A SUBVERSÃO EM CAMPO

A Copa de 1970 ficou marcada na História como a que apresentou ao mundo a melhor seleção de todos os tempos. Um desfile formidável de craques geniais, tão acima da média que se deu ao luxo de ter no time titular 5 meias, típicos camisas 10: Gerson, Rivelino, Jairzinho, Tostão e Pelé. O cabeça-de-área marcador e protetor da zaga, era nada menos que Clodoaldo, fenômeno de técnica e habilidade. Tempos depois, para a mesma função, geralmente todos se contentavam com um brucutu bate-estaca. (Mas a verdade é que em 1970 não havia brucutu na Seleção. O volante titular seria o Wilson Piazza, do Cruzeiro, bom jogador. Mas Clodoaldo não podia ficar de fora, apesar de ter apenas 20 anos. A solução encontrada foi recuar Piazza para a quarta-zaga. Não há como negar: nunca houve e nunca haverá uma seleção com tanto excesso de craques, onde predominava a técnica. Para culminar, Pelé estava no auge de sua forma e só podia dar mesmo no que deu: Brasil tricampeão). O troféu original, a Jules Rimet, tempos depois foi furtado por furtado e transformado em correntinhas e outras bijuterias…
Ao mesmo tempo que a seleção brilhava, o país vivia o auge de uma ditadura, os “anos de chumbo”, marcados pela prática de prisões ilegais, tortura e todo tipo de abuso de que um regime autoritário pode ser capaz: estava em vigor o famigerado AI-5, que punha fim às garantias individuais.
Futebol e política são indissociáveis. A própria organização de um clube de futebol é regiamente determinada pela politica – presidente, diretores, eleições, etc. (Existe um ditado costumeiro: o clube pode não estar envolvido na politica, mas o dirigente da vez, sim.)O futebol, de modo ou de outro, É sempre usado politicamente. Em 1970 não foi diferente: a ditadura fazia o impossível para creditar para si o sucesso da seleção no futebol, uma inegável paixão, nosso remédio e nosso veneno, como diria o professor José Miguel Wisnik, autor de “Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil”. Tornou-se icônica a presença do general Medici, considerado o ditador mais implacável, no Maracanã com um radio de pilha colado ao ouvido para transmitir a imagem do homem comum…
Por outro lado, em 1970, havia um grupo de ativistas e jornalistas que torciam contra a seleção, para evitar o uso da imagem de sucesso da Seleção pela ditadura. Dentre os engajados destacamos Juca Kfouri e José Trajano, que combinaram torcer contra a seleção (esta história pode ser conferida do filme/documentário “Pelé”, na Netflix. Imperdível para amantes do futebol e admiradores ou críticos de Pelé. O filme não é apenas sobre Pelé e sua trajetória, mas fornece um amplo painel da situação politica da época).
O projeto de torcer contra certamente foi abandonado logo no jogo de estréia quando o Brasil meteu uma convincente goleada contra a então Tchecolosváquia (4 X 1), com direito a espetáculo. Encantados pelo futebol-arte daquela seleção, os ideologistas não tiveram a menor dúvida em virar casaca e aplaudir apaixonadamente a seleção que realizou a mais extraordinária campanha da história, não apenas pelos números de vitórias, mas pela qualidade: a Seleção seduziu e encantou a todos que admiram o esporte das multidões. Quem esquece os 4 X 1 da final contra a Itália? O gol de Pelé depois de um impulso extraordinario e a cabeçada certeira, sem chance para o goleiro Enrico Albertosi? E o quarto gol, de Carlos Alberto, depois de um simples toque de Pelé, fechando a vitória? Mas a luta contra a ditadura não incluiria a seleção brasileira… De fato, aquela foi uma seleção, um time, que pairava por sobre os destinos do país, não se submetia a caprichos de nenhum ditador da vez!

Cincoenta e dois anos após 1970, em 2022, a história ameaça se repetir, mesmo que sob uma farsa. Mas uma farsa ao avêsso do avêsso! O Brasil vive uma crise política sem precedentes, com a clara ameaça de retorno ao regime autoritário. Um governo e uma gente muito esquisita ameaça bagunçar o coreto e promover um levante popular e não entregar o poder que ganhou a eleição pelo voto popular… Tá feia a coisa: bloqueiam estradas, pedem intervenção militar, agridem jornalistas ou partidários adversários. Embora muitos usem a camisa da seleção, elegem-na inimiga, pois alguns jogadores tem posições e opiniões que contrariam o pensamento e os interesses do governo. No jogo de estréia acontece um fato bizarro: vaiam acintosamente quando o Brasil marca os dois gols que deram a vitória. Até o golaço do Richarlison – tema da crônica anterior -, um voleio espetacular e inesperado, foi vaiado.
Isso foi inédito e não faz o menor sentido. Suprime toda a qualquer lógica! Fazer gol é fácil! Até eu faço! Quero ver é fazer gol de voleio! Tem de ter técnica, ousadia, talento, confiança. O típico lance que jogador pode consagrar o atacante ou fazê-lo cair no ridículo, se errar! Pois Richarlison acertou e para azar daqueles que vaiaram, o jovem atacante está longe de ser um alienado: usa sua projeção na seleção para chamar a atenção para os direitos de minorias e correções das muitas injustiças de nossa sociedade tão desigual…
A vaia dirigida à seleção e em particular ao Richarlison, da uma ideia, mesmo precária, do nível de fanatismo, irracionalidade, burrice e hostilidade extrema presente em certas camadas da sociedade brasileira: a extrema direita, antes relegada a um ostracismo que os fazia corar de vergonha, desta feita perde todo o pudor e deixam vir à tona seu caráter sem noção É tanta estupidez que se torna quase um deboche.
O futebol sempre proporcionou aproximação entre grupos adversários, agora divide, de forma irreversível. A Democracia Corinthiana fez história. Virou livro, estão finalizando um documentário. Mas muitos se esquecem que no grupo liderado por Vladimir, Sócrates e Casagrande, o goleiro era o irascível Emerson Leão, que tinha ojeriza pelo movimento, porém, tecnicamente, era o melhor arqueiro de seu tempo… Leão estava no time não para defender ou atacar posições politicas e sim porque era um time vencedor.

O absurdo da vaia a um gol de placa lembra um samba: “quem não gosta de samba/ Bom sujeito não é!” (Caymmi).
Ora, quem não gosta de gol bonito, bom sujeito não pode ser…

P. S. enquanto batuco essas linhas, chama minha atenção o gol de falta do Marrocos contra a Bélgica: o goleiro Courtois, incrédulo, segura nas mãos, um enorme feixe de penas. Eita! Engoliu um frangaço!
Esta Copa do Catar ja acumula algumas boas e interessantes histórias, outras deploráveis, tal como a censura à bandeira do Estado de Pernambuco, confundida com o símbolo do movimento LGBTQI+. E acasos fortuitos como esse: um dos melhores goleiros do mundo vai levar pra casa um autêntico perú! Mas continua sendo, creio, dos maiores: são 2 metros de altura…
O Marrocos ganhou: 2 X 0. Uma zebra, estilo camelo. Constrangido, o goleirão foi catar no fundo do gol. O camelo é todo seu, Courtois!

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