Na marca da cal

O pênalti é um fenômeno transcendental. Ele não obedece as mesmas regras estabelecidas no mundo do futebol e mais que isso, chega até a desafiar princípios lógicos que deveriam conduzir a verdades absolutas. Acompanhem: no pênalti existem apenas duas figuras. De um lado, vamos imaginar apenas por hipótese, temos um atacante acostumado a fazer gols, certamente o melhor batedor do time. Vamos além, considerem que o batedor também seja o melhor e mais bem pago jogador do mundo, e que jogue no mais poderoso clube do mundo e que, ainda por cima, viva o melhor momento de sua carreira multipremiada. Do outro lado, temos um goleiro desconhecido de uma seleção modesta, e que joga, digamos, no Persépolis de Teerã, por exemplo. O arqueiro terá que defender, solitário, uma meta de mais de sete metros de largura por dois e quarenta e quatro de altura. O batedor tem a bola parada ao seu dispor, posicionada a apenas onze metros da linha do gol. Ninguém pode inferir. São apenas os dois. E a bola.

Aí alguém pergunta: quem vai vencer esse duelo? Não precisa entender de futebol para dizer: “o craque!” Basta considerar todos os fatores apresentados e ponderar as probabilidades. É uma barbada.

Mas é necessário compreender a essência do jogo para assumir ignorância e dizer: “não sei não, tem que esperar bater”. Esse momento máximo da partida está situado em outra dimensão, onde o matador não é mais que a presa, o milionário e o humilde se igualam. O arqueiro improvável salta e defende a cobrança do astro. Isso acontece, quem nunca viu?

E, como se para caçoar de nós que tentamos e tentamos explicar as causas e efeitos do reino da bola, o destino pode ainda, nesta mesma partida, decidir que seja marcada uma penalidade máxima do outro lado do gramado. O atacante agora não é famoso, nem espetacular. Ele ajeita a bola com o mesmo carinho do craque, toma distância e simplesmente chuta. E converte.

Podemos trocar os personagens: coloque o Messi contra um goleiro islandês que também faz uns bicos de cineasta para ajudar a pagar as contas. O arqueiro pega. Mas calma lá, não tire conclusões precipitadas, pois Harry Keane, a estrela inglesa, acerta duas cobranças em um jogo. Griezmann e o próprio Cristiano Ronaldo, em outra ocasião, cobraram com perfeição. Cueva, do Peru perdeu a sua, enquanto o habilidoso belga Hazard marcou sem problemas, assim como cobradores de países que a gente mal consegue apontar no mapa também foram bem-sucedidos. Simplesmente não há lógica, nem explicação. Podem falar da condição psicológica dos atletas, da falta ou excesso de confiança, do tufo de grama que se solta, do morrinho artilheiro. A verdade, nua, é que ninguém sabe ao certo o que se passa naquela fração de segundos onde só existem dois: o olhar do atacante e o olhar do goleiro. Os outros atletas em campo, os árbitros, os reservas, os milhares de torcedores no estádio, os milhões de expectadores ao redor do planeta, ninguém faz ideia do que se acontece ali, naqueles onze metros. O que faz o goleiro pular para o lado certo, o atacante tocar a bola com a parte errada do pé? E quando acontece o contrário, qual a razão?

O pênalti é uma pausa no tempo. Os duelantes inspiram, o pleneta suspende a respiração à espera do incerto. Paira sobre a torcida do atacante uma certeza receosa, enquanto no outro extremo persiste uma esperança apavorada. E vem o mergulho no ar, o ponto sem retorno, o cobrador parte e transfere todas as atenções para a bola.

É gol? Pra fora? Na trave? Defendeu?

O pênalti é como a morte: chegará, não sabemos onde, nem como. Por isso, sua marca é feita com cal.

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