ANTES DO REI

Pelé do rádio. Pelé do basquete. Pelé dos mecânicos. Pelé dos violonistas. Pelé do sax. E a alcunha final, destinada ao próprio, sem qualquer falta modéstia: Pelé, o Rei do futebol. Era tão seguro disso, que poderia afirmar: Beethoven foi um Pelé da música.
Tudo Isto é Pelé e um pouco mais. O documentário Isto É Pelé, de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto, de 1974, ano de sua despedida pelo Santos em jogo contra a Ponte Preta, na Vila Belmiro e antes da fase final de sua carreira, jogando pelo Cosmos de Nova Iorque: definitivamente um artista que complementava todos os quesitos. Existem dois outros grandes documentários sobre ele: “Pelé Eterno”, de Anibal Massaini e “Pelé”, de Kevin Macdonald, o meu preferido porque aborda Pelé e seu tempo, inclusive a relação tensa que existia com a ditadura. A propósito, até hoje existe cobrança a respeito de um posicionamento de Pelé contra a ditadura, abordagem a meu ver, insana. Como disse uma vez seu filho Edinho numa entrevista ao apresentador Milton Neves,
“Pelé era um homem simples, negro e pobre, e que procurava fazer seu oficio da melhor maneira possível.”
Em suma, jogando e promovendo o futebol, Pelé já cumpria com louvores sua missão. Para os que cobram “posicionamento contra a ditadura”, em costumo perguntar: “Porque não perguntam ao Delfim Neto, que até hoje é consultado como um oráculo, porque ele apoiava a ditadura? A propósito, Delfim foi um dos que assinaram o AI-5, como todo o ministério de então. Porque não perguntam a Delfim Neto se sua consciência pesa”?
Uma maneira de, talvez, tentar compreender a “formação” do gênio seja o livro: “De Edson a Pelé – A Infancia do Rei em Bauru ”, do jornalista Luiz Carlos Cordeiro. Livro injustamente pouco conhecido e divulgado, repleto de deliciosas curiosidades. Uma delas é a origem do apelido Pelé: o time onde jogava seu pai Dondinho, Vasco da Gama de São Lourenço, tinha um goleiro chamado Bilé, bom goleiro, diziam. O menino Dico (apelido familiar, singularmente derivado de Edson), com 5 ou 6 anos, costumava assistir jogos do time ao lado do tio Jorge. Dico ficava impressionado as defesas de Bilé e os gritos da torcida “Boa Bilé! Grande Bilé! Segura Bilé!”
Depois dos jogos, ao se reunir com outras crianças, ia para o gol e, encantado com o ídolo que tanto despertava atenção da torcida, Dico, a cada defesa que fazia gritava: “Grande Bilé! Eu sou Bilé!” As demais crianças não compreendiam a pronúncia e entendiam “Pilé!”, e daí passaram a chama-lo assim, Pilé. Logo trocaram o “i” pelo “e” e assim surgia o pequeno Pelé. Estamos em fins da década de 1940 e o apelido persistiria pelas dezenas de anos seguintes com seu significado único e próprio, sinônimo de Camisa 10. Assim como Beatles – nome também enigmático.
Outro detalhe curioso de sua infância: já crescidinho, entre uns 09 ou 10 anos, disputava partidas infantis nos campinhos de Bauru e sua habilidade impressionava tanto que multidões se juntava para ver o menino em ação, até mesmo em detrimento aos jogos dos adultos. Marcava gols de carreada, às vezes fintando o time inteiro adversário. Até que encontraram uma maneira de “equilibrar” as coisas: Dico/Pelé foi proibido de passar do meio campo! Se pisasse o campo “inimigo” era falta!
Algum dia haverão de escrever uma biografia “definitiva” de Pelé/Edson Arantes do Nascimento. Até lá, grandes episódios de sua vida e carreira seguem contados separadamente, muitos já envoltos em auras míticas, como o episódio onde participava com o Santos de uma excursão pela Nigéria em 1969, então em guerra contra separatistas. O conflito sangrento teve um breve armistício para que a partida ocorresse em Benin. Depois do jogo, a guerra retomaria seu curso e só terminaria no ano seguinte, em janeiro de 1970. Outro episódio notável: em 17 de julho de 1968, num amistoso entre Santos e a seleção olímpica da Colômbia, Pelé discutiu com o arbitro e foi expulso ao fim do primeiro tempo. A torcida, furiosa com a expulsão, exigiu sua presença em campo ou sabe-se lá o que haveria. A solução encontrada foi trocar o árbitro e chamar Pelé de volta!
Lendária também é sua simplicidade, em absoluto contraste com sua figura que desfilava pelo campo como uma fera faminta, insaciável por gols. Fora de campo, entretanto, era a imagem da gentileza e simplicidade. Não se tem noticia de que Pelé alguma vez tenha destratado alguém. Isso se devia à sua natureza simples. Algo que corrobora esse ponto de vista é descrito pelo próprio Pelé: durante as filmagens de Pedro Mico, filme de 1985 de Ipojuca Pontes, ele conta da extrema dificuldade e constrangimento que teve ao se deitar com a mulher do diretor, Tereza Rachel, para rodar uma cena íntima: morria de vergonha! Embora se sentisse perfeitamente a vontade em qualquer ambiente, que fosse frequentado por príncipes ou plebeus, Pelé estava a milhões de anos-luz de ser uma figura goumertizada, glamourosa. Nunca deixou de ser o Dico que imitava o goleiro Bilé, do Vasco de São Lourenço, em Bauru, interior paulista.
Caetano Veloso esboçou uma possível tradução do que significou Pelé para a vida brasileira:
“Pelé é a maior afirmação da vitalidade da nação brasileira.” (Caetano Veloso)

E para os que cobram de Pelé mais “negritude”, um depoimento esclarecedor de Gilberto Gil para o documentário Pelé, de Mcdonald:
“Majestade. Uma majestade para negros, brancos, mestiços. Ele se tornou o símbolo de uma emancipação brasileira.” (Gilberto Gil)

Finalizo dizendo que seu modo de agir, a expressão mais clara de seu ser, era a agregação. Muitos viam em Pelé, independente da cor e da raça, a figura do irmão, do pai – mais do irmão do que do pai ou do filho. Torcedores de times adversários que, mesmo contrariados, iam para o estádio ver Pelé jogar. E sentiam um íntimo orgulho, pois antes de tudo, era da família Brasil. Era a rara e quase unanimidade, pois, mesmo se esforçando muito, não agradou a todos. E, no limite, expõe mazelas de nossa sociedade tão desigual, abissal.
Talvez, agora, ao entrar definitivamente na Eternidade, o mundo caótico que nos cerca, acredite na mensagem que intrinsecamente ele transmitia – aqui, parafraseando Obama, outro negro ilustre: “Sim, é possível!”

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