Desencontro

Se os jogadores brasileiros morassem no Brasil e tivessem sentido, minimamente que fosse, a dor e a distopia desses quatro anos do governo de saída, teriam feito outra Copa? Se mesmo morando fora, como a maioria, e não fossem alienados, como a maioria, teriam feito outra Copa? Não sei como você responderá. O que sei é que não é possível separar coisas indissociáveis: o país e a seleção. Essa seleção apresentou um sentimento sem graça, de quem perdeu a eleição no país. E, por extensão, não representou a outra parte do povo porque da sua alma está distante. A pátria que me refiro é negra, indígena, mestiça, pobre, não violenta, desarmada, solidária, plural, democrática, simples, acolhedora, oprimida. A da cachaça e do samba. Do frevo. Do jogo de cintura. Da ginga. Da cerveja de botequim. Do amor. Do dividir. Da alegria. Do afeto. Esperançosa. Da não opressão. Da não misoginia. Da não homofobia. Antirracista. Que desconstrói o machismo nosso de cada dia. Da vida comezinha.
O que explica a não identificação deles com a gente e da gente com eles a não ser isso? Ficaremos assim, eternamente distantes?

Impressão minha ou mesmo os ricos que voaram até o homofóbico Qatar não se irmanaram entre si e com os jogadores? Ambos, torcedores e jogadores, estariam despatriados no exterior, como muitos aqui, em frente a quartéis, marchando sob tempestade pedindo intervenção militar e alienígena? Pedindo que o exército salve o país, que é uma República Federativa, do comunismo? Atirando na PF? Insano. Impensável.

Para pensar: a pátria verde-amarela vendida pela extrema-direita, que se enrola na bandeira, mas não aceita o resultado de uma eleição absolutamente legítima, é um engodo, uma anarquia, uma antidemocracia, uma vergonha mundial, uma humilhação, um disparate, uma patologia social.

O episódio envolvendo a carne banhada a ouro foi tosco, mas muito mais descabida foram as alegações de que ninguém tem nada a ver com o que cada um faz no seu dia de folga ou a de que serviria de motivação para as pessoas subirem na vida. O que é isso?! Os negros ao redor daquela mesa desconhecem que a carne mais barata do mercado é a negra? Subir na vida é almejar comer carne banhada a ouro? Que valor é esse? Que ideología está por detrás disso? Que sociedade se ergue com uma meta dessa? Que jogador se forma? Que pedagogia deriva daí? Que cidadania?

Sócrates, não o filósofo, mas o doutor da bola, disse que é possível educar um país com uma bola nos pés. Eu acredito! Mas desde que se tenha gente acima, no topo, no campo, sob exposição midiática, que tenha um valor que não seja o de querer se tornar celebridade. Que a gente rotule como ídolo sem ter que fazer o duro exercício de separar a obra da pessoa.

Desse ponto de vista concordo com a Milly Lacombe quando ela diz que precisamos refundar e começar de novo o futebol brasileiro, terreirizar a torcida, jogarmos originalmente, do nosso modo, como os argentinos fizeram ao modo deles e reencantaram o mundo do futebol e o nosso.

Para ela: “Em campo, desfilam o que são culturalmente: intensos, dramáticos, veementes, apaixonados, desesperados. Eles pegam esses valores, que formam boa parte da identidade nacional, e transformam em tática, em estratégia, em equipe, em time, em música. Nós não”.

Eles até encontraram uma abuela de carne e osso e com ela cantaram e se alegraram. E nós? O que fomos além de um desencontro? Nem o futebol, onde, apesar das diferenças, nos reconhecíamos como nação, nos integra mais socialmente.

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