Nada há de ser pleno nesta vida: nem o bem nem o amor

A plenitude é uma utopia. Nada haverá de ser pleno, pelo menos não nessa existência. Talvez por um milésimo de segundo se possa sentir o hálito da plenitude de um sentimento como a alegria, mas a precisão de sua lembrança é tão frágil e evanescente quanto a de um sonho bom.

Na estreia da seleção brasileira, enquanto os fogos espocavam no céu verde e amarelo depois do segundo (e espetacular) gol do “Pombo” Richarlison, em frente à minha casa, do outro lado da rua, onde há um “lar para idosos”, uma ambulância do SUS, com luzes intermitentes acionadas, constatava o falecimento de um dos anciãos que lá morava. Logo chegaram os familiares e a alegria da estreia bem-sucedida, que empolgava o país, se contrapunha às lágrimas que derramavam.

Mesmo com a vitória, também havia lágrimas de dor, medo e tristeza no Catar. Neymar, o craque da seleção, temia deixar a competição mais importante de sua carreira de forma precoce. Uma dura entrada do zagueiro sérvio lhe causou uma entorse no tornozelo direito. A imagem do lance não lhe era nem um pouco auspiciosa.

Apesar de a maioria das pessoas lamentarem o infortúnio do polêmico jogador, havia um bom número de brasileiros a comemorar sua desgraça, em mais uma prova de que nada é pleno, tampouco o amor. Afinal, muito do ódio indisfarçado vinha da polaridade política que se apoderou do Brasil e que opôs os “cidadãos de bem” que idolatram as armas aos “cidadãos do amor” que, muitas vezes, também vociferam ódio aos seus opositores.

Em grande medida, é possível dizer, a partir dessa ironia — que revela a maldade do bem e o ódio do amor —, quão facilmente nos sentamos sobre nossas próprias sombras e, ao ignorá-las, unimo-nos todos na mesma perversidade, cujo sintoma mais marcante, claro, é a negação da própria vileza.

Enquanto isso, e a essa altura do campeonato, a família que perdeu seu ente — e ainda o pranteia, possivelmente —, realiza a sua missa de sétimo dia. O craque, por sua vez, se entrega a um intensivo tratamento para voltar aos gramados e batalhar, ao lado dos companheiros, pelo sonhado hexa. Quem sabe ele não venha de fato, trazendo um pouco de alegria à família órfã de seu ancião e transformando as lágrimas da lesão em um ingrediente extra para a glória salgada do craque “impopular”.

Algo me diz que, apesar das exceções, porque nada há de ser pleno nesta vida, tanto os “cidadãos de bem”, quanto os “do amor”, vão comemorar a conquista do time canarinho, caso ela realmente aconteça.

*Foto: Gustavo Ferreira

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