A final de Copa que não assisti ao seu lado

O chão de taco em tom de cedro, a velha cômoda de madeira escura, o cinzeiro cheio de cinzas sobre ela, o restinho de cigarro aceso entre os dedos da mão direita, o cotovelo apoiado na cômoda e os olhos azuis de pupilas negras apertadas concentrados no jogo que passa na TV de tubo. Faz 20 anos que Padulão, meu avô materno, se foi, mas eu me lembro dessa cena como se fosse agora.

Quando era criança, aos domingos, eu costumava ir para a casa dele, pela manhã, para assistir aos jogos do inesquecível Napoli de Diego Armando Maradona e “Carecone”, numa época em que só a Bandeirantes transmitia o badalado Calcio Italiano. Mas a primeira lembrança dessa cena me remete a uma possível confusão de memória, que faz tanto sentido para mim que só posso aceitá-la como verdade, independentemente de qualquer racionalidade cronológica.

Seria meados de 1982, Copa do Mundo da Espanha. O inverossímil residiria no fato de, na ocasião, eu ter menos de dois anos — pouco tempo de vida para uma memória tão rica e “precisa”. Pode ser que esse encontro tenha acontecido quatro anos depois, em 1986. Mas, independentemente do ano, o cenário era o mesmo. Os personagens: meus pais, meu irmão e Padulão.

Não sei que jogo passava, mas lembro que era da seleção canarinho e que meu pai — corintiano e o maior inspirador da minha paixão por esportes e pela literatura — e meu avô, palmeirense, elogiavam muito um tal de Sócrates. A memória desse episódio, somada à minha busca por justificar o que não precisa de justificativa, me levaria a acreditar que virei corintiano porque tinha ouvido um palmeirense querido, meu avô, se derreter em elogios a um jogador do Corinthians de meu pai.

Oito anos depois, quando, aos nove de idade, já dispunha de clareza suficiente para minimizar as imprecisões de memória da infância, assisti, naquela mesma sala, ao lado de Padulão, à eliminação da seleção brasileira de Carecone para a seleção argentina de Dom Diego. Chorei pela primeira e última vez por causa da seleção. Fiquei tão abalado, que nem notei a reação dele.

Outras duas Copas se passaram: duas finais, uma conquista em terras norte-americanas e uma dura derrota na França para o genial Zidane. Não assisti a essas Copas com Padulão. Assisti em casa, no clube onde eu jogava, na casa de amigos… Mas, durante esses oito anos de glórias e dores futebolísticas, eu seguia visitando, quando podia, meus avós. Eu vivi boa parte desses anos de adolescência e juventude fazendo peneiras em clubes de futebol. Padulão, ao lado dos meus pais, era um dos meus maiores incentivadores:

— Deixa o menino! Jogar bola dá dinheiro — dizia ele a minha avó, que julgava o sonho de ser jogador uma perda de tempo.

Nunca foi uma perda de tempo para mim, mas o sonho da bola morreu para renascer na escrita, na literatura, o que agradava mais à minha sábia avó. Contudo, a bola continuava a me unir ao velho Padulão que, na Copa da Coreia e do Japão, em 2002, resolveu me presentear. Mesmo de madrugada, ele caminhava até a casa dos meus pais — a três ou quatro quarteirões da dele — para assistir aos jogos conosco. Ele não podia mais fumar, por causa de um enfisema pulmonar, mas, como não era muito obediente, aproveitava o caminho de ida e de volta para pitar às escondidas.

Dos jogos que vimos juntos, me lembro especialmente do disputado contra a Bélgica. Ele achava que seria fácil e se surpreendeu com a força e qualidade dos belgas. Tive de pegar água para ele algumas vezes, que também precisou se levantar algumas outras para tomar ar. Eu brincava com ele:

— Ué, vô, não ia ser fácil?

— Puta que pariu! — ele respondia em voz baixa e ajustando a respiração.

A final daquela Copa, contra a Alemanha, eu tinha combinado de ir assistir na casa de uns amigos da época de colégio. Comemorei muito com toda a turma os dois gols de Ronaldo “Fenômeno” e o pentacampeonato. Quando cheguei em casa, perguntei à minha mãe se o Padulão tinha ido lá naquela manhã. Ela disse que sim e que havia assistido ao jogo com ela e com meu pai. Não me arrependo de ter visto o jogo com meus amigos, mas senti, naquele mesmo momento em que minha mãe falou comigo, saudade da final que não havia assistido ao lado dele.

Em setembro daquele mesmo ano, Padulão se foi, por causa do enfisema, mas não sem antes tornar a Copa do Mundo, para mim, um evento muito mais rico em significado do que já seria normalmente.

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