O MOSTACHON DE FRESA FICA PARA OUTRO DIA.

Menos de duas semanas para a bola começar a rolar nos campos do Qatar e eu aqui, disfarçando, fingindo desinteresse. Também, com tantas possibilidades à mão por que o Tite iria me convocar? Logo a mim, que já estou meio inativo, talvez fora de forma. Sem falar na idade, já avançada demais para um lateral direito. Estou aqui, olhos grudados na televisão, mas sem alimentar desejos, esperanças, expectativas. Apenas estou curioso. Com essa garotada marcando as manchetes esportivas do mundo todo, bombando testosterona por todos os poros, bons goleadores e em excelentes formas físicas, quem iria pensar no velhinho aqui?
Saio para almoçar naquele restaurante que há tempos estava planejando ir, mas andava meio arredio em me afastar da televisão. Na verdade, minha mulher me convenceu de que o celular me avisaria de qualquer, hum, usando as palavras dela, compromisso. Escolhi alguma coisa no cardápio, sem me ater muito aos detalhes dos acompanhamentos. Driblei o garçom quando veio me perguntar se eu estava ansioso com a convocação de logo mais. Para a guerra da Ucrânia? Tentei fazer graça. O garçom sorriu educado e se afastou. Minha mulher segurou a minha mão e sorriu pra mim, positiva e cativante. Tentei retribuir o sorriso, não sei se me saí muito bem.
O que o comentarista disse ontem naquele programa esportivo não teria nem me ofendido se não fosse o detalhe. Aquela história de ex-atleta assistindo o jogo de dentro do campo, aquilo sim, aquilo me rasgou o peito. Doeu. O cara não pode brincar assim com os sentimentos de um homem que já carregou essa equipe nas costas, correndo várias vezes toda a extensão lateral do campo e rolando a bola ajeitadinha para os artilheiros. Muitas vezes, ele mesmo metendo um chutão e balançando as redes.
Brinca não, que aqui não tem nenhum morto. Ainda não. Mesmo assim, resolvi pular a sobremesa, o que deixou minha mulher chateada porque ela adora o mostachon de fresa desse restaurante. Silêncio total no carro, na volta para casa. Resisti o que pude, mas nem fui escovar os dentes. Assim que entramos, peguei o controle remoto e liguei a televisão. Um repórter acabava de dizer que o Tite iria anunciar a convocação ainda naquele dia. Mudei de canal, não porque estivesse desinteressado, mas por esperança de que em algum outro canal o treinador já tivesse divulgado a lista de convocados. Claro que a bonita repórter do outro canal acabava de repetir a mesma informação que seu colega da outra emissora havia dado. Suspirei. Resolvi, enfim, escovar os dentes. Ao cruzar comigo no corredor, minha mulher me abraçou apertado. Depois me deu um beijo e sorriu: você fez a sua parte, meu amor, ela disse docemente. Pensando bem, ela tinha razão. Eu fiz o que me comprometi a fazer: treinei duro para recuperar a boa forma, ganhar ritmo e velocidade. Fiz o que me pediram, como eu disse ao Fábio, o treinador físico, missão dada é missão a ser cumprida. Voltei para a sala de televisão, recostei na poltrona e nem dei muita atenção ao rebuliço em torno da entrada do Tite na sede da CBF, no Rio de Janeiro. Tentei me distrair com a aparência do Cléber, o auxiliar dele. Achei que ele está mais envelhecido. Distraído, quase levei um susto quando minha mulher gritou. Demorei a entender o que estava acontecendo, ela pulava e gritava, parecia fora de controle. Só quando vi a minha própria foto surgir , acreditei no que estava sendo mostrado na tela. Caí novamente sentado na poltrona. Ainda bem que não estou em campo. As pernas me falharam.

Compartilhar:

Curta nossa página no Facebook e acompanhe as crônicas mais recentes.

Crônicas Recentes.