Mashas, Nikas, uma braçadeira e o silêncio antes do apito

E lá vai a bola rolando outra vez nos gramados sob olhos atentos do mundo.

Que horror! Repetem os que discordam das escolhas da FIFA. Nem cerveja!

A escolha está feita e as obras monumentais erguidas. Sobre que bases? Haja escavações pra trazer à luz toda a verdade. E a essa altura já não importa. A bola deslizou macia obedecendo aos pés de cataris e equatorianos depois de uma clara exposição do propósito dos anfitriões. Deus, tradição, riqueza e tecnologia guiados por um simpático mascote inspirado no lenço de cabeça usado pelos homens, como a dizer: olha em que transformamos o deserto, vem nos conhecer. Mais simbólico, impossível.

Nos comentários das redes sociais, li raivosos argumentos sobre a necessidade de boicote. Fiquei me perguntando se isso não seria uma negação da realidade. Como se fechando os olhos magicamente o desrespeito aos direitos humanos deixasse de existir. Não. Ele continua lá, aqui e em muitos outros lugares revestidos de simpática democracia. Decido seguir os olhos arregalados de La’eeb. Quero ver e falar, enquanto vivo o prazer de ver um esporte. Um jogo nunca é apenas sobre gramados e bolas.

É sobre gente.

Foi o que me disse hoje a goleada da Inglaterra sobre o Iran no tradicional Khalifa, reconstruído e modernizado obviamente. Então, olhar pro Catar neste instante é ouvir as pessoas que povoam a arena e sua ampla criatividade. Afinal, é um campo de futebol.

Harry Kane, o capitão inglês, foi impedido de entrar no campo com a braçadeira “OnLove”, em protesto pela homofobia. Usou o plano B: “No Discrimination”. E, no segundo tempo, a repórter da BBC, Alex Scott, entrou ao vivo com a faixa no braço. Em uma partida, há sempre um drible desconcertante que vale os nossos aplausos.

E em meio ao barulho das torcidas há também o silêncio que grita.

Antes que o juiz desse o sopro inicial no apito, na hora do hino, os jogadores iranianos emudeceram. Pra bom entendedor, às vezes nem meia palavra é necessária. Seu culturalmente rico país, hoje também sob um regime teocrático, está vivendo uma convulsão social iniciada pelas mulheres que se recusam a usar o hijab (véu islâmico) depois da morte de Mahsa Amini, 22 anos, presa e torturada pela polícia da moralidade por não cobrir os cabelos adequadamente. Por protestar também morreram outras garotas, como Nika Shakarami (16 anos), estopim da expansão da luta por liberdade e endurecimento da violência de estado, que diz agir em nome de um deus.

Um lance que mereceu tanta atenção quanto a colisão do goleiro Alireza Beiranvand com um colega de time. Substituído, livrou-se de carregar na história pessoal os seis gols num único dia.

Pois é, tudo isso em pouco mais de noventa minutos de espetáculo, dentro de um estádio cujo nome é uma referência ao poder dos “mensageiros de deus”, maior autoridade jurídica, política, militar, social e religiosa numa comunidade islâmica. Dá pra não se encher de curiosidade por esta copa?

(Inglaterra 6 x 2 Iran)
Imagem: montagem a partir de fotos divulgadas pelo portal Terra.

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