A bola, o menino da mãe e o beijo

Se olharmos o mapa veremos o beijo.

Ali onde se convencionou chamar Estreito de Gibraltar se situa o que poderia ser um beijo entre o continente europeu e o africano. Os lábios se estendem, mas são separados por treze quilômetros de mar. O beijo que selaria o reencontro da terra permite apenas a troca de fluidos entre o mediterrâneo e o atlântico. E quanta diferença isso faz.

Num mundo desigual, em que o lugar de nascimento determina o olhar do outro, fico imaginando quantas jovens mulheres, com pés em África, olharam as ondas em dias de céu limpo e desejaram que seus filhos nascessem além mar. Hakimi nasceu. Regragui também. E tantos outros frutos de uma dispersão populacional forçada ou, no mínimo, motivada pelo desejo simples de bem viver. Outras futuras mães escolheram ficar.

Aos meninos de suas mamães, em qualquer solo, dão-se bolas e histórias de uma cultura milenar. Mostram-lhes as areias e os campos como brinquedos de aprender a viver. Se forem agraciados pelo talento e pela oportunidade, grandes chances de profissionalização. Na diáspora ou não. Coube a Regragui, juntá-los em nome de uma nação. Repetia ele, ao perceber olhares atravessados: “todo marroquino é marroquino”. E o que se viu foi uma garra inovadora balançar a trama das redes da tradição europeia no futebol. Bélgica, Espanha e Portugal vendo seus sonhos serem desfeitos por bolas que obedeciam ao comando dos pés daqueles meninos incansáveis. Tempo normal. Prorrogação. Pênaltis. Valia a luta até o último segundo porque o fim só se alcança quando a partida acaba.

Enfrentarão a França em semifinais marcadas pelo questionamento da tradição. Um dia antes no gramado entrarão o tradicional futebol sul-americano representado pela bicampeã Argentina e a pouca experiência da Croácia, que mandou pra casa a orgulhosa seleção pentacampeã. Que semana uma bola rolando no centro de luxuosos estádios nos proporcionou!

Alguns logo veem uma resposta política do futebol aos assombros do preconceito e da ocupação colonial de territórios. É fato que Espanha e França ocuparam Marrocos por 40 anos, e que os meninos nascidos na Espanha são marcados como espanhóis de origem marroquina. Foi o que levou Hakimi, que poderia compor a seleção do seu país de nascimento, a atender ao pedido da mãe e defender as cores dos seus ancestrais. Não à toa, a vitória contra a seleção espanhola seria selada com um beijo. O beijo que os continentes se recusam, talvez para não assumir o vínculo, que como o maternal é inevitável.

No entanto, é preciso lembrar que a forte cultura árabe marroquina não precisou do futebol pra se impor. Por isso prefiro enxergar ao invés de vingança um movimento evolutivo, que aos poucos vai mudando o eixo do mundo porque nos obriga a olhar de outro modo o que sempre esteve lá. É o que também me diz o gesto dos meninos de levantar a bandeira palestina diante das câmeras de Israel. O futebol apenas reflete um mundo redondo como a bola e que gira, gira, gira.

Ironicamente, esta é a copa do Catar – um país de fortes tradições e avesso às migrações.

Marrocos x Portugal (1 a 0)
Ilustração: montagem a partir de fotos de divulgação em agências de noticias.

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