SUA SENHORIA, MEU GURI

Adoro esse pronome de tratamento: sua senhoria. É assim que se dirigem ao meu guri. Olha aí, ah, o meu guri, olha aí.
Não é um juizinho qualquer, é árbitro e da entidade maior: FIFA. Só não foi nessa Copa por pura proteção com outros juízes menos qualificados. Mas, fazer o que no Catar? Um país que tem um problemão contra as mulheres e a diversidade, fazer lá o quê? Ainda bem que não foi.
Respeitem meu guri, nunca foi respeitado. Nem no gol deixavam ele jogar. Quando faltava goleiro, o último da linha poderia pegar com a mão.
Saraiva, o mau caráter da rua e Fonseca, o mau caráter do bairro, donos dos times, não deixavam meu guri nem pisar no campo de terra bruta da várzea.
Ruim de bola, mas bom caráter, meu guri, ah, o meu guri. Ele obedecia os caras.
Sentava na rocha mais alta pra poder ver o jogo de que mais gostava. Nossa, balé sem ensaio…
Torcedor de barranco. Só expectador que vislumbrava dribles e morria de inveja de tanta habilidade.
Até que tentou, treinava sozinho no quintal. Embaixadinha não passava de três controles. A bola escapulia. Na tabelinha com a parede, ela voltava quadrada.
Hoje, nos melhores campos do mundo. Não me importo em ser puta de todas torcidas. Ele se importa, volta arrasado pra casa. Eu, não. Mesmo porque fui fiel ao pai dele, meu finado marido. Pelo menos em atos; nos pensamentos, nem tanto.
Houve um dia em que meu guri, ah o meu guri, devolveu a bola pro goleiro pra ele recomeçar o jogo. O arqueiro, distraído, deixou a bola entrar nas redes. O Mineirão aplaudiu de pé o gol de araque. Só por deboche. Meu guri chegou em casa emocionado: mãe, fiz um gol no Mineirão lotado.
Sei não, acho que meu guri precisa de uma ajuda especializada. O que não consigo engolir é ele ser chamado de ladrão. Coitado do meu guri. Quando menino, devolvia troco mal devolvido pelo “seu” Joaquim, português da Venda. Nunca roubou um níquel sequer.
Juiz ladrão! Meu guri, por que você foi enfurnar nessa lama do tal de futebol? Por que não outros caminhos? Você era craque em matemática, engenheiro, professor, mas, não.
Conheço sua índole, meu guri. Midiático. Seu rosto bonito estampado em todas telas planas e não planas desse país. Só para os Saraivas e Fonsecas da vida te respeitarem.
Aquele último gesto em que a câmera te procura, aquele trilhar do apito, que define quem ganhou ou quem perdeu te salva e redime das frustações da infância.
Nessas horas, ser mulher da vida, prostituta por meros noventa minutos, não me constrange.
Sinto é orgulho.

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