COPAS DOS AMORES E DAS DORES

Corria o ano de 1978. Numa tarde fria de junho, quando o Brasil estreava na Copa do Mundo contra a Suécia, com um resultado pífio de um a um, com um belo gol de Reinaldo por cobertura, apesar do “pasto” encharcado, conheceram-se num bar colorido de verde-amarelo da Savassi, ouvindo “Baby”, na voz de cristal da Gal.
Adoravam futebol e, apesar do desastre da estreia do Brasil e a frustração, ficaram juntos. Logo depois do jogo, perto do bar, deram palpites a um outro desastre, entre um Corcel cor de mel e um Mustang cor de sangue. Ele, de costeletas e camisa apertada aberta no peito. Ela, de trancinhas, com confetes tristes e molhados nos cabelos castanhos.
Conquistaram-se. E tinham esperança com a conquista do Brasil. Só não foi possível, porque a seleção do Peru não ajudou. Para o Brasil se classificar para as finais, os peruanos podiam tomar até quatro gols da Argentina. Tomaram seis. Uns vendidos. Aquele país, com nome de galináceo, não tinha nada a ver com o “Galo”, glorioso e raçudo, time do coração dos dois. Segundo Cláudio Coutinho, nosso treinador, o Brasil foi campeão moral. Moral da história: não ganhamos nada.
Havia um peruano que morava na mesma república dele, que de tanto ser xingado de vendilhão e de tanto jogarem moedas na sua cara, mudou não só da república de estudantes, como também da República Federativa. Foi terminar sua pós-graduação na Argentina. Um vendido.
Na final da Copa, torceram com ardor, no mesmo bar, para Holanda, apostando no futebol-arte de Cruyff e seus asseclas. Não teve jeito. A Argentina tinha o cabeludo Mario Kempes que desequilibrava e, além de tudo, possuía uma orquestração toda a seu favor. A orquestra sinfônica e mágica da “laranja mecânica” desafinou novamente, como em 1974. Uma pena. Vitória da Argentina e da ditadura vigente.
Às vésperas da Copa do Mundo de 1982, quando Telê Santana fez a melhor seleção de todos os tempos, ela estava grávida. Grávida de trigêmeos. Quando o Éder meteu aquele golaço por cobertura, em cima do maior goleiro do mundo da poderosíssima Rússia, ele decidiu o nome de um dos filhos: Éder.
Quando Zico, num voleio belíssimo, colocou a bola nas redes de uma seleção não tão poderosa assim, ele quis homenagear o craque, colocando o nome de Artur em outro filho.
Nas quartas de final contra a Itália, ela entrou em trabalho de parto. Três horas antes de começar o jogo, o barrigão de três rebentos começou a latejar. Estourou sua bolsa. A Bovespa, também deu uma estourada para cima, já que a vitória era iminente.
Ele correu com ela para Maternidade Otaviano Neves. Ela não se conformou. Logo agora? Quando Paulo Roberto Falcão, o rei de Roma, deu um drible num italiano e acertou um petardo com o pé esquerdo no ângulo, empatando um jogo que parecia para lá de perdido, ele decidiu o nome do terceiro filho: Paulo. Só que o outro Paulo, que não era Falcão, mas Rossi, que não era brasileiro, mas italiano e que não tinha mãe, devia ser de chocadeira, desempatou no final, e o Brasil foi eliminado. Manteve o nome do filho. Paulo seria sempre ambíguo.
Nasceram os três filhos: Éder, Artur e Paulo, de cesariana. Apesar do sofrimento de toda uma nação pela derrota de sua melhor seleção, as crianças não sofreram. Os médicos facilitaram, abrindo um caminho mais asfaltado na barriga da mãe. Vieram ao mundo sem dor. Dor, só dos brasileiros que não acreditavam no que viam.
A mãe, quando voltou da anestesia, meio bamba, não falando coisa com coisa, fez uma pergunta ambígua:
– Ganhamos?
– Ganhamos, meu amor! Três lindos meninos. Te amo!
– Ganhamos o jogo?
Ele, pensando que era metáfora de uma mãe debilitada:
– Ganhamos, querida! Apesar de três filhotes numa mesma fornada, nós vencemos a natureza. Saúde perfeita. Tenho tanto orgulho de você!
– Tô falando do jogo do Brasil, pombas!
– Bom, aí deu uma zebrinha. Perdemos no finalzinho. Arrependeu-se. Pra quê contrariar sua amada na convalescença?
Ela chorou um choro sentido. Até hoje ninguém sabe se pela perda do jogo de sua seleção, se de emoção pelos trigêmeos, ou pela dor dos pontos inflamados no abdômen. Só se sabe que ela acordou todo o terceiro andar da Maternidade naquela madrugada, fazendo um quarteto infernal com os trigêmeos que, também, não eram de ficar de bico calado.
Três dias depois, na saída do hospital, marido e mulher juraram de pés juntos e fizeram votos que seus três filhos jogariam na seleção brasileira, envergariam a verde-amarela e trariam muitas glórias para um país sem glória. Fizeram os votos de mãos dadas. Na época, eram os únicos votos que podiam dar, já que votar para Presidente ainda era proibido.
Em 1986, colocaram os três filhos em frente à televisão, para ver todos os jogos. Os meninos, então com quatro anos, não entendiam nada, mas mesmo assim assistiram a tudo. Contrariados, mas assistiram. Melhor não terem assistido. Os craques de 1982 estavam quatro anos mais velhos e as pernas já não obedeciam às cabeças geniais, tanto é que Zico até perdeu um pênalti decisivo. Telê também estava mais rabugento. Guadalajara nunca mais seria a mesma.
Mas teve um lance que valeu toda uma Copa. Um tal de Maradona pegou uma bola no meio de campo e driblou toda a defesa da malvada e malvina Inglaterra. Se os ingleses souberam tão bem defender uma ilha, não souberam parar um baixinho atarracado, cabeludo e… droga, argentino… Por falar em droga, acho que ele partiu para ela, só para que pudesse vislumbrar, nas suas alucinações, aquele lance que morou em sua retina até a morte.
Já na Itália, em 90, o melhor é nem comentar! Para quem, como o casal futebolista, já tinha visto vários craques na sua trajetória de vida, aguentar a “era Dunga” era demais. Lazzaroni, nosso técnico, devia estar louco. Também com esse nome de italiano, queria o quê? Depois, ser eliminado pela Argentina com um passe de um tal de Maradona, mais gordinho ainda e sofrer um gol de um lourinho, chamado Claudio Caniggia, que mais parecia cantor de rock de Woodstock do que centroavante de seleção latina, aí sim, já passava da conta. Esses argentinos…
E ele, pondo fé nos filhos. Eles, sim, seriam os grandes craques de que nosso país precisava. Batia bola com os meninos no terreiro da casa, exaustivamente. Ensinava todos os fundamentos: passe, dribles, condução de bola, cabeceio. As crianças com a maior preguiça.
Depois de passarem quatro Copas juntos, veio a primeira crise no casamento. Achavam que eles é que davam azar para nossa seleção. Depois que ficaram juntos, o escrete nacional não papou nada. Tetra, neca.
Brigavam por qualquer coisa. Ele, nervoso:
-Você não passa da próxima Copa!
-Tá falando sério, ou é só pra me agradar?
Separaram-se, mas por pouco tempo. Voltaram a tempo de ver a Copa do mundo nos Estados Unidos, em 1994. Foram ver ao vivo e levaram os filhos. Em vez de contemplá-los com a Disney, contemplaram com a Copa do mundo. Os filhos, enfadados. Preferível brincar com brinquedos mágicos a ver vinte e dois homens correndo atrás de uma bolinha de couro. Coisa mais sem graça! Estavam enfastiados de bola. Os pais só tinham esse assunto. Usavam termos de repórter esportivo: os filhos não se machucavam, contundiam-se. Se os meninos se atrasavam para ir à escola, os pais eram enérgicos: “rápido, rápido, o tempo regulamentar já está se esgotando. Não vou dar nem um minuto de prorrogação”. Coisa mais chata. A vida é cheia de prorrogações.
Mas foi até bom ter ido à América. O Brasil, finalmente, foi tetra. Comandado por outro baixinho marrento. O professor Parreira, tirando água de pedra. Dunga, mais velho e mais sábio, levantou a taça, calando os puristas do futebol. A pátria de chuteiras, enfim recompensada!
Quatro anos depois, quando o mundo estava na maior convulsão e a palavra de ordem era globalização, Ronaldo, o fenômeno, teve uma convulsão, não pelos apelos do mundo, mas pela decisão de uma final de Copa. Zagalo fez o certo, escalando-o. Zidane, um francês, que nem francês era, naturalizado e, além de tudo, com uma calva que mais parecia de seminarista, fez mais certo ainda. Eliminou-nos. E tivemos que engolir.
Éder, Arthur e Paulo, com dezesseis anos completados no mesmo dia, assistiram impassíveis, comendo pipocas de um micro-ondas recém comprado. Não choraram pela perda, mas consolaram os pais que se debulharam em lágrimas em cima da bacia de pipocas. As pipocas ficaram mais salgadas. Foi o aniversário mais sem graça dos meninos.
Na Copa do mundo do outro lado do mundo, Copa mais sem graça, em dois países – Coréia e Japão – e a gente nem pôde matar serviço, porque os jogos eram de madrugada, o casamento dos dois também perdeu a graça.
A famosa crise dos sete anos. Sete anos não. Sete Copas. Viveram sete Copas do mundo. Vinte e quatro anos, vivenciando craques e perebas. Estavam desgastados com a vida e com nosso futebol. Mas a crise foi temporária.
Não custaria nada tentar outra vez, dar a volta por cima. A vida está aí para dar sempre uma nova chance. Que o diga Ronaldo, o fenomenal! Deram a volta por cima, como o craque. Penta- campeões.
Assistiram à Copa do Mundo de mãos dadas, nas madrugadas de um junho frio, debaixo de um cobertor, tomando “Nescau” e comendo pães de queijo quentinhos. Emocionados com jogadores habilidosos e com a mesma letra inicial no nome: “Erre”. Arrependeram-se por não terem colocado essa letra inicial no nome dos filhos. Letra “erre” não tem jeito: é nome de vencedor. Erraram.
Os filhos, naturalmente, não assistiram a nenhum jogo da Copa. Ferrados no sono.
Botavam a maior fé que as crias iriam pôr mais criatividade e arte nesse nosso futebol. Não teve jeito. Éder, só com vinte anos, era o primeiro violino da orquestra sinfônica de Minas. Artur, com os mesmos vinte anos, brilhava como ator no grupo Galpão. Paulo, como não poderia deixar de ser, com os mesmos vinte anos, era o melhor bailarino do grupo Corpo. Foram fazer outras artes. Talvez mais nobres.
Houve um dia que a arte em Minas Gerais uniu-se no Palácio das Artes. O grupo Corpo, depois de se apresentar pelo mundo afora, iria fazer uma performance, acompanhado pela grande orquestra. Logo depois, o grupo Galpão, depois de grande sucesso na Inglaterra, representando Shakespeare, pra inglês ver e adorar iria se apresentar no mesmo palco. Minas, fazendo o que mais sabe fazer: Arte. Espetáculo de música, dança e teatro. Éder, Artur e Paulo, protagonistas.
Os pais não foram. Preferiram o Mineirão, ver o seu Atlético enfrentar o Valeriodoce de Itabira, terra do Carlos Drumonnd, que gostava também de outras artes.
Quando, na mesma hora, o público que lotava o grande teatro, levantou-se das poltronas quentes e acolchoadas e aplaudiu freneticamente a apresentação de seus filhos, eles levantaram-se das arquibancadas frias de um Mineirão vazio e vaiaram o artilheiro que estava sem nenhuma inspiração.
Quando a plateia do maior teatro, levantou-se pela segunda vez e pediu bis, eles, no maior estádio, levantaram-se e xingaram a mãe do juiz.
Filhos realizados, pais desolados.
Às vésperas da Copa da Alemanha, os filhos adiaram as turnês e prometeram ver os jogos junto com os pais. Estavam preocupados com o desamor deles. A tela é plana e o amor nem tão pleno. Combinaram levar salsichão e vinho alemão. O quinteto, enfim juntos, torcendo pelo quarteto mágico.
Só que os gringos descobriram o truque. Daquele malfadado quarteto mágico não saiu nem um mísero coelhinho da cartola. Os filhos até gostaram do que viram. Gostaram, principalmente, de uma testada de um seminarista no peito de um grandalhão italiano.
Depois do fiasco da Copa, a mãe aconselhou-os a não se preocuparem, não adiarem turnês. Melhor ficarem longe mesmo, dançando, representando e tocando música. Não carecia tanto zelo. Queria mesmo era distância de pé frio. Dali a quatro anos, mamãe gostaria que os filhos ficassem distante da “Mãe África”.
Eles não concordaram. Começaram a achar que o futebol é uma forma de arte, coreografia improvisada, um balé esquisito.
Desobedeceram. Artistas gostam de artes. Torceram pela convocação de Neymar, artista como eles. Dunga não deu pelota para apelos artísticos e deu no que deu. A truculência sucumbiu. Perdemos.
Finalmente, 2014. Outro Maracanaço não pelo amor de Deus, chispem daqui seus moleques, arrumem turnês por esse mundo afora, fiquem longe daqui. O pior é que o moleque do Paulo, já estava com as juntas duras, balançar o esqueleto nos palcos, trazia dores. Não excursionaram mas mantiveram uma distância regulamentar- termo futebolístico- do Mineirão. Ficar perto dos pais tensos, naquela altura do campeonato, poderia causar dissabores.
O casal nem precisou fazer reserva, eles moravam na Pampulha, foram a pé pro estádio, enrolados numa bandeira verde e amarela, numa época em que bandeira ainda não tinha sido surrupiada do verdadeiro povo.
Sete a um. Azedou.
Pronto, dessa vez o casamento foi pro vinagre de vez.

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