Em 1958, o Brasil ganhou sua primeira Copa do Mundo, e anunciou ao mundo um estilo de jogo inconfundível. A brutalidade inglesa e a elitização da bola deixaram de ser a prioridade por aqui e o futebol brasileiro passou a ser exaltado por seu “futebol-arte” ou “futebol-poesia” como definiu o cineasta e poeta Pasolini.
Se a seleção de 1958 fosse transportada para os dias de hoje, é provável que Pelé fosse o camisa dez de algum milionário europeu e que Garrincha estivesse jogando na Premier League, caso contrário dificilmente seriam convocados pra seleção.
Em 2018, o atacante William, que joga na Inglaterra, foi questionado pelo craque Djalminha porque ele não se arriscou durante a Copa da Rússia em fazer jogadas ordens do técnico. Djalminha respondeu que essa era a grande diferença entre a sua geração e a de agora: ser desobediente para fazer algo inusitado.
O padrão europeu esteriliza a criatividade e a ousadia do jogador brasileiro. Se Mané Garrincha jogasse na Premier League, ele seria substituído todas as vezes que passasse os pés em cima da bola ao exibir sua ginga.
Como aconteceu com o atacante Anthony, da seleção e do Manchester United que ao fazer seu drible 360º na Inglaterra despertou a repulsa do ex-jogador, ídolo do United e agora comentarista Paul Scholes, ele disse que aquilo era um exibicionismo ridículo e era melhor Anthony parar com isso. No intervalo deste jogo, o atacante brasileiro foi substituído.
Anthony sabe, assim como Garrincha sabia, que uma finta na beira de campo, aparentemente descomprometida, pode alterar o emocional de um adversário e contribuir para uma estratégia vitoriosa. Ao aplicar uma finta o jogador se sente mais confiante e balança a segurança do oponente.
A finta não é como uma prosa, uma ação sistemática e realista como diria Pasolini, a finta é uma metáfora que ecoa e subverte significados e reverbera sentidos para além desse tempo-espaço.
Isso é incompreensível para a visão de mundo europeia, condicionada e treinada para exercer e impor a obediência contida. É preciso coragem e criatividade para desestabilizar seu oponente sem nem encostar na bola, como fazia Mané, ou causar tonturas no marcador girando com a pelota, como faz Anthony. Por isso, considero que toda a finta, principalmente no futebol atual, é um ato de rebeldia.
Talvez seja injusto comparar as fintas consagradas de Mané, com os giros do jovem Anthony, que está na sua primeira Copa. A questão é que Mané foi um passarinho livre para alçar os voos que bem entendesse e isso o tornou célebre, já Anthony está sendo tratado em seu time como um filhote engaiolado e com as asas cortadas e temo que isso possa comprometer sua liberdade, como aconteceu com William em 2018.
Ao esterilizar a criatividade e a ousadia do futebol, se esteriliza também a linguagem e somente a desobediência pode conceber uma narrativa cheia de fintas e gingas, mesmo que elas estejam em extinção nos gramados pelo mundo. Tomara que Anthony e todos os jogadores brasileiros que estão sendo perseguidos por fintar na Europa, façam dessa Copa um verdadeiro ato de rebeldia e continuem resgatando o futebol-arte que só o Brasil pode nos oferecer.
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Michel Yakini-Iman
Michel Yakini-Iman é escritor. Nasceu em São Paulo e atualmente vive em Itanhaém-SP. Autor de Na medula do verbo (crônicas, 2021), Amanhã quero ser vento (romance, 2018), Acorde um Verso (poesia, 2012) e Crônicas de um Peladeiro (2014). Colaborou como colunista no portal Na Galera Futebol Clube, dedicado ao futebol de várzea de Salvador-BA em 2021.
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