Com que Roupa?

Não estou sozinho, aliás, estou bem acompanhado.

Dizem que o poeta Carlos Drummond de Andrade, como eu, se enfeitava de camisa nova para ver os jogos da seleção brasileira. Gosto do ritual. Ir à loja desportiva mais próxima e comprar, por preço sem sempre justo para o consumidor, uma camisa da Canarinho, e nos dias de jogos, copos de cerveja à mão, sofrer e me alegrar, solidário aos locutores televisivos.

Poderia fazer alguns esforços financeiros e desabalar para países distantes para ver os jogos ao vivo. Não fiz isso nem quando os certames se deram quase no meu quintal, no Mané Garrincha, para meu desgosto apelidado de arena. Esse desapreço, esclareço aos mais jovens, nasce por lembrar o partido político que por duas décadas sustentou todos os malefícios da ditadura militar.     

Quem viveu aqueles tempos sabe que a questão é séria. Aliás, tudo, nos últimos quatro anos, foi quase que revivido.

Na campanha eleitoral de 2020 o poeta Greg Marinho alertou para o que viria. Depois de postar no Facebook uma crítica ao então candidato da direita, recebeu um comentário do músico Zé da Flauta: “deixa de mimimi. É Bolsonaro 17”. A resposta de Greg se equipara à genialidade. “O mimilitarismo, / meu carente Zé da Flauta, / ou seria Zé da falta / de amor e de humanismo? / Traduz todo anacronismo / de uma mente integralista. / Como é que pode um artista / gostar de quem fere a arte? / Toda harmonia se parte, / você tá mais prá faltista. // Seu mimimi só está prá / quem não tem entendido. / Aprenda com o sustenido / que alcançará fá fá fá. / Que Dó da falta de Lá, / da pobre canção que ouvi. / O Sol não brilha por Si / quando se orquestra impostura. / Notas dessa partitura / eu nunca REconheci.”

Infelizmente o poeta Greg não foi ouvido.  

Bom, jogando ainda no campo político, nesta Copa do Qatar, me inquieta a pergunta: com que roupa eu vou? Em 1930 Noel Rosa usava da gíria para falar de uma penúria que não o deixava ir sequer ao samba. No meu caso, angustia saber que camisa usar nos jogos da seleção. O verde e amarelo foi conspurcado descaradamente por uma ideologia doentia. Sei que não é de agora que se usam politicamente as esperanças acendidas com a expectativa de nossas vitórias futebolísticas.

Em 1958, quando ganhamos a primeira copa, a imagem do presidente Juscelino Kubitschek no salão do Brasília Palace Hotel ouvindo pelo rádio à partida final transformou-se num símbolo da modernidade em curso. Doze anos depois, nos preparativos para a copa de 1970, o presidente Médice, que gostava de ir ao Maracanã com um radinho de pilha à mão, insistiu para que o jornalista e então técnico da seleção João Saldanha convocasse Dario. João foi curto e preciso: “presidente, assim como não nomeio seus ministros, não venha escalar meu time”. João perdeu o cargo, Zagalo e Dario, que não jogou uma partida sequer, foram convocados e o Brasil foi campeão.

Estávamos, nos últimos meses, numa quebra de braços que muitos insistem em manter. O futebol foi usado incontáveis vezes para cabalar votos, e a emoção plena levantada na Copa do Mundo em muitos momentos serviu de bandeira.

Lembro que assisti surpreso, noutros tempo, da janela do Ministério da Justiça, a Esplanada dos Ministérios tomada por uma multidão a vibrar com a seleção de 1998. Os jogadores, cabisbaixos, optaram por irem até o Palácio do Planalto num ônibus fechado. A reação festiva da multidão tomou todos de surpresa. Era o fim da Copa da França, quando ficamos em segundo lugar.

Fico a imaginar Neymar, com suas opções políticas equivocadas, transformado em herói nacional diante de mais um título mundial da nossa seleção. A democracia teria muito que sofrer. E já que o moço gosta tanto se comparar a Pelé, vale a pena não esquecer o que disse Romário do rei do futebol: “Pelé jogando é um poeta, falando é…” Enfim, todos conhecem essa história.

A verdade, no entanto, é que os deuses do futebol são democratas. Devemos comemorar o fato da Copa do Qatar acontecer em novembro, quando a democracia e a perspectiva de paz e segurança venceram o medo e a mentira.

Entretanto persiste minha dúvida: com que roupa eu vou? Agrada-me sobremaneira a camisa azul. Ela pode dar sorte. Os jogadores de 1958 inicialmente se negaram a jogar com ela, mas foram convencidos por Paulo Machado de Carvalho, que chefiava a delegação: “vocês vão jogar com o manto de Nossa Senhora Aparecida”. E o Brasil foi campeão.  

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