Existem acontecimentos que marcam época, que fazem o mundo parar para ver e comentar. Um desses momentos aconteceu exatamente às 17h30 da quinta-feira, 24 de novembro de 2022. O mundo tinha os olhos vidrados nos lances que aconteciam ali, no estádio Lusail, em Al Daayen, Catar. Jogavam Brasil e Sérvia.

O jogo estava no campo de ataque da seleção brasileira, perto da lateral esquerda. Vinicius Jr, na intermediária recua uma bola quicando, mas calma, para Neymar.

Nesse mesmo instante, Jorge, em Jaboatão dos Guararapes, sente a pontada decisiva, a barriga distendida parecia reclamar da feijoada, inesperada para aquele dia da semana.

– Não dá mais, pensou. Em um rápido movimento de canto de olhos, observou a porta do banheiro, entreaberta. O momento vagaroso da partida, estacionado no meio campo foi a deixa, disparou rumo à toalete.

Neymar mata a bola com a coxa esquerda, displicente, observa os adversários à espreita, distantes, e avança com a posse da pelota num trote quase sem vontade.

No mesmo segundo, Irineu, na sala de sua confortável casa em Cascavel, sentado a frente de sua TV novinha, 55 polegadas, comprada em 12 vezes especialmente para a Copa, arregala os olhos em sua máxima amplitude, evita piscar e inclina a cabeça para cima. Dona Ivete pinga a primeira gota do colírio prescrito no olho direito do marido.

Neymar passa a pelota à frente, de volta para Vinicius Jr, a zaga sérvia ainda observa à distância. Neymar para, parece não acreditar que a jogada vai vingar.

Toca o interfone no apartamento 53 de Renata, na Vila Maria, em São Paulo, a cerveja gelada chegando, atrasada, todos vidrados na telinha, ninguém esboça reação. O toque insiste, a anfitriã assume a responsabilidade e dispara em direção à cozinha.

A bola se encosta em Vinicius Jr., que olha para o adversário, apenas um na marcação. Há uma oportunidade. Um toque na redonda e redireciona a jogada em direção à área. Vinicius Jr. avança.

Jorge, em seu momento mais individualista, toma posição, assenta, imputa uma força que não se fazia necessária em tal circunstância.

O zagueiro não arrisca o bote, temendo levar um drible seco da estrela do Real Madrid. O sérvio recua, observando e cercando atentamente o ponteiro brasileiro. Outros dois companheiros se aproximam para triplicar a marcação.

Renata, afobada, saca o interfone da parede: “Alô!”

Vinicius Jr. acelera, adentra a área perigosamente, o espaço diminui, ele precisa decidir o que fazer, vai cortar para dentro e chutar? Vai para a linha de fundo?

A segunda gota atinge o olho esquerdo de Irineu, os dois ardem, as pálpebras cerram ainda mais.

Vinicius Jr. surpreende e, sem dar pistas, bate de trivela, lançando a bola para a marca do pênalti. Ela passa rente ao braço do primeiro zagueiro, corta rasante à frente do outro, zunindo em direção a Richarlison.

Em um movimento decidido, peristáltico, Jorge conclui sua jogada rapidamente.

“Alô!”, insiste Renata. Do outro lado da linha, nada.

Irineu, com olhos ainda fechados e lacrimejantes, busca com as mãos o contato com dona Ivete. Ela passa o lenço.

A bola chega forte, Richarlison recebe e mata com a perna esquerda, a pelota sobe, flutua no espaço.

Jorge respira aliviado, olha para o lado, mira o próximo lance, o papel pendurado na parede.

A bola, caprichosamente, sobrevoa a cabeça de Richarlison, que acompanha o movimento com olhos vidrados.

Irineu, com a cabeça voltada para baixo, enxuga as lagrimas, tentando desesperadamente abrir os olhos.

Richarlison se lança ao ar torcendo o tronco, engatilha a perna direita, pedala e acerta a bola num estampido breve.

Renata ouve a voz do porteiro Nildo ao fundo: – “vai…vai!”

Um décimo de segundo depois, tempo infindável no universo do futebol, um uníssono brado ecoa, atravessando o país, de Jaboatão a São Paulo, a Cascavel: -“GOLAAAAÇO!”

Jorge pula, puxando o papel, que se desenrola em desespero. Renata arremessa o interfone para o alto. Irineu arregala os olhos em direção à luz da TV, ou seria a janela?

Richarlison marcha, o peito de pombo estufado, olha para um lado, para o outro, busca o sorriso dos parças. Orgulho feito bola.

Jorge aos trancos chega de volta, os amigos pulam ao seu abraço. “Golaço! Gênio! Golaço!” Ele tenta espiar a TV atrás dos ombros amigos. A mesma cena ocorre em São Paulo, Renata ri nervosa, tentando se desvencilhar dos braços do namorado. Irineu sente o corpo macio e pesado de dona Ivete caindo sobre ele, o foco começa a voltar, pipocas espalhadas em toda a sala.

REPLAY: Neymar toca uma bola despretenciosa para Vinicius Jr, que avança em direção a três zagueiros pela ponta esquerda. Entrando na área, solta um cruzamento de trivela para Richarlison, no meio. O centroavante mata a bola, que sai de seu controle por um instante, em párabola, dando um lençol em si próprio. O pombo lança vôo, as pernas estilingam, o peito do pé acerta a pelota em cheio. A bola estufa as redes sem chances para o goleiro sérvio.

Jorge, Renata e Irineu acompanham o lance, incrédulos. Assistem ao replay da mesma maneira que um jovem, em qualquer momento do futuro, irá ver a jogada, ao buscar em seu gadget os gols mais bonitos de todas as Copas. Em meio a euforia, comentários e gritos, sente-se um certo desapontamento em nossos três personagens. Não, eles não testemunharam. E sabem disso. Existe algo inexplicavelmente tangível em presenciar um fato em sincronia, ainda que com delay, ainda que a milhares de quilômetros. Não somos apenas espectadores, somos cúmplices da história.

Aos que não estavam ao vivo, segue a vida.

– “Meu bem, como está seu olho?”

– “Dona Renata, dona Renata? …a cerveja chegou.”

– “Hummm, que cheiro é esse?”