Acontece a cada quatro anos. Impreterivelmente. Quando a gente percebe, eles já estão em campo, peito estufado e a certeza de que, desta vez, sairão vencedores.
E olha que dessa vez as chances são grandes. Estão treinando há muito tempo. Desde antes da Copa de 2014.
Obviamente, não estou falando do esquadrão brasileiro, que se reuniu há apenas alguns dias. Me refiro à seleção daqueles que fazem de tudo para derrotar não um adversário qualquer, mas sim a própria Copa do Mundo.
Ontem mesmo, alinhados como se ouvissem o hino, porém na fila do supermercado, dois compatriotas conversavam.
– Eu até gosto de futebol, mas olha a situação do país, está um caos!
– Verdade, Copa do Mundo agora só vai tirar a atenção dos problemas reais.
E esse bate-bola continuava na minha frente, os dois tabelando. O entrosamento era perfeito, parecia que um sabia o que o outro estava pensando. E eu, atônito, tal qual um zagueiro sueco frente-a-frente com Pelé e Mané.
– A greve dos caminhoneiros rolando…
– E o povo preocupado com o dedinho do Neymar!
– E a crise política, então…
– Os safados vão aprovar o que quiserem nesse mês.
– O preço da cebola!
– Vai continuar subindo e ninguém vai reclamar!
– É só Neymar…
– Neymar…
– E Neymar!
Calma lá! Aqui no gol tem Taffarel. Então eu resolvi sair, essa era minha.
– Concordo com vocês, a situação não está fácil pra ninguém, mas a gente iria resolver todos os problemas dos últimos quatro anos justamente nesse mês?
Deu rebote! Os dois me olharam fixamente e depois entre si. E continuaram com passes rápidos, num jogo envolvente e ameaçador, bem em frente à grande área:
– É muita alienação.
– Sem falar que o país para durante os jogos.
– Ninguém produz nada.
De repente, um balaço à queima roupa.
– Já pensou se o Brasil for campeão?
– O clima de festa invade esse país.
– Aí ferrou, somem os problemas e tudo continua na mesma.
Desta vez, agarrei. Levantei a cabeça e, num lançamento certeiro, coloquei meu time em contra-ataque:
– Então depois do 7×1 era de se esperar que nossos problemas diminuíssem, não?
Pobre de mim, não valorizei a posse de bola. Até o Galvão Bueno sabe que essas ligações diretas da defesa para o ataque quase sempre são interceptadas, ainda mais jogando contra um time tão articulado, com a zaga bem postada.
– 7×1 a gente está tomando na educação.
– Nos desastres ambientais.
– Na saúde.
– No déficit público.
– Na habitação.
– E no emprego.
– Realmente não há clima para Copa agora.
Eu só contei seis. Antes de levar mais um petardo, resolvi partir para cima e marcar meu primeiro tento. E, dessa vez, iria construir a jogada, articular o meio de campo, envolver o adversário.
– Não há clima para a Copa porque temos problemas sérios no país a serem resolvidos? Da mesma forma nunca poderíamos nos divertir num cineminha, nem tão pouco preparar essa fondue que o senhor está levando. Onde já se viu, curtir o Dia dos Namorados juntinho com a patroa, nesse friozinho, enquanto há fome e desabrigados pela cidade?
O primeiro zagueiro veio num bote seco.
– Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa…
Dei um drible curto, certeiro, e continuei com a pelota:
– Enquanto não resolvermos o problema do analfabetismo está proibido admirarmos nossos filhos balbuciando suas primeiras palavrinhas. Onde houver falta de transporte público não existirá uma caminhada à beira-mar, sob a brisa quente do Atlântico.
Ah, estava me sentindo o próprio Leônidas, um poeta com a bola nos pés. E continuei meu solilóquio, costurando o time adversário com meus verbos certeiros.
– Frente a essa situação dramática que vivemos, realmente não há clima para se ouvir um concerto no Teatro Municipal, muito menos prosear naquele barzinho descolado. Netflix debaixo do cobertor? Nem pensar. E por favor, devolva essas cervejas e esse vinho – que por sinal é muito bom.
Entrei na grande área, o goleiro saindo desesperado, olhos arregalados, braços abertos e peito estufado para abafar meus argumentos. A bola não desgrudava dos meus pés, era um Romário dentro da área, faltava só a finalização. Mas eis que acontece o imponderável. Nada há o que se fazer quando o destino cruza nossa frente, somos apenas um joguete dos Deuses. Eu e minha pretensão, meu orgulho ferido, tentando em vão defender em palavras o que não é do mundo da lógica. Ali, naquele momento em que se aproximava minha glória verborrágica havia uma televisão, bem na frente dos caixas. Entre ofertas imperdíveis e notícias sem importância sobre celebridades, meu ataque foi desmontado em um só golpe.
No monitor, os gols do amistoso da seleção. Os dois adversários, cansados na minha argumentação, voltaram os olhos para cima. William passa para Neymar, sozinho dentro da grande. Dava para bater. Não bate. O zagueiro austríaco chega, Neymar ginga. Outro zagueiro chega. Ele vai perder a bola. Não perde. Rola a esférica para um lado, puxa para o outro, o zagueiro no chão. Um tapinha e a pelota passa por baixo das pernas do arqueiro..
Os dois compatriotas ficam em silêncio por um instante. Até que o primeiro dispara:
– Golaço, hein?
– O Neymar é mesmo um craque.
– Que tranquilidade dentro da área…
– Ah, tá…quero ver fazer isso na Copa!
Coisas do futebol.