Tragédia à brasileira
A Copa não trata do Sublime, do ponto de vista clássico, daquilo que possui intervenção divina. Mas vamos combinar que, na contemporaneidade, nada se aproxima de forma tão visível de uma narrativa do convívio entre deuses e homens.
As grandes estrelas do futebol usufruem de toda glória, como heróis, ou semideuses, mas padecem da vaidade e do orgulho, o que, como sabemos, o deuses que deles cuidam não perdoam. A ver.
Há características no herói trágico grego que batem com a performance de Neymar nessa Copa, como de resto em sua busca insana pela Bola de Ouro. Mas a sua incapacidade de ler com clareza que o seu destino está dado, o exclui até mesmo desta condição de Herói. O herói épico possui a bela morte, em batalha, coberto de glórias. O trágico, não, ele cai, morre, perde tudo, abatido pelo destino, recompondo-se a natureza. Qual deles será Neymar?
Trair o próprio clã é fatal no desenrolar dos grandes feitos e façanhas do herói que, tragicamente, não pode compreender a natureza dos eventos que o cercam, visto que não possui consciência dos motivos de sua queda.
Em outras palavras, é preciso que haja uma correlação direta entre a salvação da humanidade e o sacrifício do herói, o que recolocaria as coisas do mundo em ordem. A trama de Neymar, por óbvio, ainda não decorreu por inteiro, o elemento catártico de seus enganos ainda precisa ocorrer definitivamente para que seja purificado, limpo.
As conexões dos heróis com os reis, explícita na peripécia neymariana, com lances que vão desde o apoio à reeleição do mito ao perdão milionário pela sonegação de impostos, levam-nos à uma preliminar configuração do bode expiatório cuja ferida suja a sociedade. Mas talvez ainda seja cedo para sabermos. Ele vive e as mitologias são pródigas em reviravoltas.
Neymar não é mau nem perverso. Mas passou de uma boa para uma má fortuna, como pregam os dicionários da tragédia desde Aristóteles, por um erro fatal de julgamento, causado por uma falha fundamental de caráter e uma inteligência presunçosa, por achar que tudo enxerga, em estando absolutamente cego do seu Daímon, seu destino. Será a mente o calcanhar de Aquiles em Neymar?
Havia oráculos espalhados por toda Doha: o gato que invadiu a entrevista, o bife de ouro, a queda precoce dos impérios hispano-germânicos, a comemoração do pênalti contra a Coreia imitando o choro do presidente derrotado, e todas as tantas “daimonstrações”(desculpem-me, foi irresistível) de soberba, com brincos e colares e tatuagens em ornamentos, tudo isso provocando a compreensível ira dos deuses. Mas falta um ethos, uma consciência de si ao eterno menino Ney para essa leitura totalizante.
O desenrolar dessa história está evidentemente em aberto, afinal, tudo se esclarecerá apenas no momento da catarse. Como disse Cazuza, saiba que ainda estão rolando os dados, o tempo não para, etc. O que podemos vaticinar como spoiller aqui é que faltam amigos ao nosso projeto de herói épico que saibam ler com ele o movimento dos pássaros e passar a ele a fita num biscoitinho da sorte: toda luxúria é nefasta, campeão. E o povo não terá compaixão de você no trágico encontro do mundo dos deuses com o mundo dos homens.
(Foto: Perseu e a Medusa, por Canova)