Mês de frio e de festa. De fogueira e de bola.
Numa noite junina de 1970 vi o maior balão de minha vida. Com folha dupla, bucha redonda, infinitas lanternas feitas à mão.
Era dois de junho e a rua assistiu o que não consigo reproduzir com palavras. As que encontro são tímidas, opacas diante do esplendor daquele monumento de papel e fogo. Na parte debaixo, como saia rodada, um estandarte quase escandaloso em exuberante verde e amarelo.
Do subúrbio, veio baloeiro de Guadalupe, Encantado. Das bandas de Jacarepaguá, chegou uma curriola do Anil e até de um bairro chamado Tanque. Distintas senhoras de meia idade desembarcaram de lotações da Tijuca e do Grajaú. A garotada desceu do morro dos Macacos. Festejar o balão era o desejo de todos.
Quando quatro ou cinco homens fortes sopraram juntos a boca larga feita de arame, a bucha se encorpou, o papel fino se expandiu e o gigante tomou embalo, pegando a direção da Aldeia Campista.
Subiu resoluto e colorido, apagou as estrelas e nunca mais voltou.
Seu Rufino, que comprou papel de seda, velas e arame no Cachambi, subiu num caixote, pigarreou e chamou o povo.
– Ei pessoal, palavra do Rufino. Amanhã a Copa começa e se o Brasil ganhar o Tri vamos soltar um balão ainda maior. Quem quiser colaborar é só assinar a lista lá na quitanda.
Desci da goiabeira de onde assisti a decolagem iluminada e o discurso do Rufino direto pra cama. Porém, a noite foi de insônia. Virava pra direita e lembrava do balão; pra esquerda ouvia novamente as palavras de um comentarista da rádio Tupi. Carlos Marcondes jurava que a Tchecoslováquia seria “osso duro de roer”.
Torcedor apaixonado em minha primeira Copa de verdade, vivia cada treino, cada mesa redonda, cada palpite que ouvia aqui e ali. Lia e relia o Globo, Manchete Esportiva, Jornal dos Sports. Mesmo antes dos dez anos, já me achava sabido a ponto de criticar “as feras do Saldanha”.
– Prefiro Roberto que Tostão. Melhor Marco Antônio que Everaldo. Caju joga mais que Edu.
Meu pai se interessava e eu me empolgava, palpitando do banco de trás da Vemaguetti.
– O Luiz Mendes disse no Bate Bola Nacional que Félix é baixinho pra goleiro e que o Brito tem mania de fazer falta perto da área.
Susto mesmo o Brasil levou no último amistoso da nossa preparação, a seleção com Pelé e todos os titulares empatou com o Bangu. 1 x 1 contra um saco de pancadas. Que vexame. É como se hoje os garotos do Tite não conseguissem vencer o Sampaio Corrêa. O nervosismo do país só aumentava.
De volta ao dia seguinte do balão. 3 de junho de 1970. O Brasil entra em campo e eu me garanto no camarote. Meu lugar preferido no apartamento acanhado do edifício Silvana, em Vila Isabel, era embaixo da mesa de jantar a poucos metros da tela convexa da Philco.
É, pela primeira vez no Brasil, a Copa ia passar na TV. Meu pai se espalhava numa poltrona acolchoada e meus manos dividiam o sofá de napa azul. De tão nervosa, nossa mãe preferia ouvir pelo rádio.
Aos oito minutos. Dei razão ao comentarista. Tchecoslováquia 1 x 0. Melhor o Brito ter feito a falta, pensei já derrotado. Que nada, nosso time era o melhor do mundo. Rivelino empatou e meu pai abriu a segunda garrafa de Antártica quando o juiz apitou o fim do primeiro tempo.
Meus olhos presos na tela não perceberam quando ele foi ao banheiro. Era a cerveja que se manifestava. Enquanto meu pai se aliviava, Gerson dominou a bola, deu dois ou três passos e viu Pelé correndo por trás do zagueiro. A canhota mágica lançou a bola no peito do Rei. Pelé parou no ar, dominou a pelota, ajeitou a passada e como diziam na época: “fuzilou o arqueiro. Inapelavelmente”. Brasil 2 x 1.
O país inteiro gritava gol e num banheiro apertado e escuro de Vila Isabel a bexiga de meu pai se esvaziava com potência total. Ele tentou interromper, mas era impossível. Angustiado pela euforia que tomava conta da casa, do bairro e do mundo, correu pra sala. Não deu certo, é claro.
Rivelino, Tostão, Gerson e Pelé se abraçavam, os foguetes espoucavam e meu pai ali, no meio da sala com a calça do pijama molhada. Paralisado pela surpresa e pela raiva, resmungou que tinha perdido o repeteco. É, na primeira Copa transmitida pela TV os lances eram repetidos uma vez e olhe lá.
A gente riu do inusitado, da cara dele, do cheiro que se espalhava e, sobretudo, da calça molhada, mas meu pai não achou graça.
– Tão querendo levar um pescoção, um catiripapo bem dado? Vai todo mundo pro quarto agora, que eu vou ver o jogo sozinho.
Minha mãe tentou acalmar os ânimos, trouxe outra calça de pijama, mas foi Jairzinho, o Furacão da Copa, quem nos salvou. Ele fez mais um e logo depois o segundo. Dois golaços. Meu pai se acalmou e a gente escapou do pior. Brasil 4 x 1.
O futebol que combinava arte, força e fôlego, demoliu retrancas e massacrou todos os adversários. No jogo final, outra goleada. 4 x 1.
Se Rufino, o quitandeiro apaixonado por balões, cumpriu a promessa, não lembro.
Se Vila Isabel parou para comemorar, não sei.
O que sobrevive até hoje nas recordações da Copa de 70 não são apenas golaços de Jair, lances geniais de Pelé, chutes indefensáveis de Rivelino, lançamentos do maestro Gerson, dribles de Tostão. Tampouco a inacreditável a escalada de vitórias, seis consecutivas num festival de bolas na rede.
Ainda mais viva do que todas essas imagens, surge a cena da perna canhota daquela calça de pijama de meu pai. O pijama de flanela azul e branco molhado e manchado de xixi.
Meio século depois reconheço: meu pai tinha razão. O gol do Rei é um dos momentos mais sublimes de todas as Copas. E ele fez de tudo para não perder. Foi por pouco, pai.
Você, querido leitor, tem mais sorte, pode assistir quantas vezes quiser. Então, sugiro, veja agora.