O dia que Pelé passou a mão na minha cabeça

Meu pai, médico, era Delegado Regional de Saúde (espécie de subsecretário de Estado) da região Noroeste de São Paulo, que vai de Bauru até a divisa do Mato Grosso. Despachava duas vezes por semana naquela cidade. Entre seus funcionários, o mais querido era um preto simpático, que cuidava da limpeza da Regional, centroavante goleador do time da Delegacia nas horas vagas: Dondinho. Diziam que chutava com os dois pés (um de cada vez) e cabeceava como poucos.
O servidor gostava tanto do chefe, que vivia pedindo conselhos a ele. Na maioria das vezes, meu pai acertava. Nem todas.
Certo dia, Dondinho pediu licença e entrou na sala do doutor. Estava indeciso se deixava ou não o filho, saindo da adolescência, jogar futebol em Santos – o menino Dico, ainda de calças curtas e pernas finas, marcava gols e driblava como poucos no Baquinho (Bauru Atlético Clube), time da cidade. Perguntou ao chefe o que ele achava. A resposta veio rápida, segura: “Ora, Dondinho, futebol não dá camisa pra ninguém. Manda esse menino estudar”.
Dico era o apelido de infância do Pelé.
Agora, estamos no início dos anos 1960, pouco depois da consagração de Pelé na Copa da Suécia. A história aconteceu na casa dos pais dele, em Bauru, algumas horas após o Santos Futebol Clube enfiar sete no outro time da cidade, o Esporte Clube Noroeste, com exibição de gala do nosso maior craque, o novo Rei do Futebol. Eu era bem pequeno, morava em Lins, cem quilômetros dali.
Sempre que tinha jogo do Santos contra o Noroeste em Bauru, lá íamos nós – meus pais e meus quatro irmãos – ver o Pelé jogar. Numa das vezes, encontramos o Dondinho na arquibancada. Logo veio sentar-se ao lado da gente. Gostava mesmo do meu pai. Acabou nos convidando para um café em sua residência, depois do jogo.
A casa era modesta. Enquanto aguardávamos o ônibus da delegação, que não chegava nunca, todos conversavam animados. Menos eu. Falavam sobre a bela performance do Santos, os quatro gols do Pelé, o sucesso do garoto na Europa, enquanto Dona Celeste, a esposa do dono da casa, servia o cafezinho e o bolo feitos na hora. Eu não queria saber de conversa, muito menos de bolo quente. Queria ver o Pelé de perto, tocar nele. Já pensou?
O ônibus aparece. O pessoal na maior batucada. Chegou buzinando, despertando a atenção dos moradores daquela rua estreita e arborizada de Bauru. Corri para o terraço. O coletivo estacionou bem na frente da casa.
O craque saiu sob os aplausos dos companheiros. O ônibus seguiu seu caminho e a música foi desaparecendo naquela ruela, já congestionada por fãs e curiosos da cidade conhecida como “Sem Limites”.
Muito simpático, Pelé, então com os seus vinte e poucos anos de idade, cumprimentou a todos, falou meio envergonhado dos seus gols, reclamou de dores no corpo e, de repente, veio direto em minha direção.
E agora? Vai falar comigo! Até que ele não é tão grande assim. Dentes brancos. O que que eu faço?
Passou a mão na minha cabeça. Pelé! Na minha frente! Não acreditei. Estava cara a cara com o rei do futebol, o melhor jogador do mundo!
— E aí garoto, gostou do jogo?
Não respondi nada, fiquei mudo, paralisado e trêmulo. Só voltei a falar em casa, a cem quilômetros dali. Pedi uma roupa limpa para minha mãe e fui tomar banho. A emoção foi demais para as minhas entranhas.

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