MICK JAGGER E TIO ZEQUINHA.

Mick Jagger é um dos maiores nomes do rock de todos os tempos. Amo. Um ícone da música. Um arrebatador de multidões. Mas o folclore maledicente do futebol não perdoa. É impiedoso e injusto. Assim que o vi comemorando o gol da Inglaterra contra a Croácia no estádio, me lembrei do meu tio bisavô Zequinha. Tanto que reproduzo aqui uma lenda familiar, que até inspirou conto no meu segundo livro publicado. Vou tentar ser breve.
Tio Zequinha era um pacato funcionário público, que morava numa vila do Catumbi, onde mal falava com os vizinhos de tão tímido e recatado. O comando ficava por conta de sua mulher Edite, vigorosa mãe de três filhas, terror da vizinhança pela sua rabugice e rigor disciplinar.
Os jogos da Seleção Brasileira na Copa no Brasil em 1950 vinham mobilizando todos os corações. Quem não ia ao estádio, ficava em casa ou nos botequins, em estado de oração, quase de joelhos em volta dos rádios. A paixão era contagiante. Cada exibição do Brasil nas vozes dos locutores soava como resgate da autoestima de um povo, até então incorporado pelos espíritos dos vira-latas, dos chinfrins, dos mequetrefes.
Mas eis que chega a final contra o mediano time do Uruguai, a redenção nacional, que colocaria o orgulho de ser brasileiro nos peitos estufados e soberbos do país, do Presidente da República ao soldado raso, do médico renomado ao catador de papel.
Naquele domingo, meu tio Zequinha acordou com uma surpreendente determinação.
– Hoje vou ao estádio!
A família estranhou o rompante, mas nem a mulher mandona teve coragem de demovê-lo da ideia. O dia prometia festa e não seria a ausência de um pai banana em torno do rádio que mudaria um destino tão certo e glorioso.
De paletó e chapéu, Tio Zequinha saiu cedo e pegou o bonde de destino oposto ao Maracanã. Entrou numa leiteria na Avenida Central, vazia de dar dó, mas com uma mesa especialmente preenchida. Era Dircinha, sua colega de repartição, com seu vestido justo e lábios carnudos de batom carmim, que sorvia um frappé de coco à espera do amante.
– Dircinha, meu bem, nunca vi esta cidade assim.
– Um dia perfeito para nós, Zequinha. Foi Deus que colocou essa final de Copa no nosso caminho.
E da lá partiram para um hotel no centro, onde portas e janelas foram trancadas, isolando seus mundos de excitações românticas transgressoras, do mundo lá de fora, dos foguetes e dos gritos antecipados de Brasil Campeão.
E de suspiros em suspiros, chegaram ao momento de vestir suas roupas.
– Estranho, Dircinha. A cidade está silenciosa.
– Será que o jogo não acabou?
Tio Zequinha consultou o relógio de bolso:
– Acabou sim, meu bem. E eu não estou acreditando no que realmente possa ter acontecido.
Despediram-se ali mesmo, já apressados e aflitos para chegarem em suas casas. Pelos trilhos de seus bondes, foram respirando os ares do desastre: ruas mudas, os mais exaltados chutando latas, algumas explosões de choros incontidos. A tristeza em cada esquina falava por si só: Uruguai 2, Brasil 1.
Assim como a cidade inteira, a vila do Catumbi era um velório. Tio Zequinha entrou em casa de chapéu na mão, sorrateiro e amedrontado, tremendo da cabeça aos pés.
Encontrou Edite aos prantos, jogada no sofá, rodeada pelas três filhas chorosas, a mesa posta com um bolo intacto em forma da Maracanã e uma bandeira pelo chão. Tia Edite partiu furibunda para o marido:
– O que você tem a me dizer, seu traste?
Tio Zequinha baixou a cabeça, apertou o chapéu. Ficou mudo, resignado, com medo de dizer o que não deveria dizer.
– Você é um pé-frio, desgraçado! Toda vez que vai ao estádio dá nisso!
Tia Edite, fora de si, puxou o marido pelo paletó aos trancos e safanões até o quarto do casal. Bateu a porta ensandecida e aplicou no marido uma memorável surra de chinelo e cabide.
Mil perdões, Mick Jagger. A culpa não foi sua. A Croácia foi a maior e a mais bonita surpresa desta Copa. Mas impossível não lembrar do injustiçado Tio Zequinha.

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