SONHOS

Josefa (Zefinha para os da família) foi a caçula dos seis irmãos, todos homens. Nasceu em plena caatinga cearense, no dia do padroeiro São José, 19/03, e em sua homenagem o pai lhe deu o nome.
Enquanto a mãe se contorcia nas dores do parto, amparada por Mainha Dita, o pai olhava o céu, esperançoso pela chuva, rezando pelo milagre do santo, na virada do século.
A vinda da ´´fia muléˋˋ parecia ser um bom presságio, pois no final dos anos 90 a coisa fora brava. Desde cedinho acordava com o sol vermelhão, imenso, despejando fogo, esturricando a terra já rachada, crestando as plantas, secando os animais.
Cresceu, embora raquítica pela escassez de comida causada pelo eterno ciclo de pouca chuva e estiagem, trabalhando com o pai e com os irmãos nos roçados de milho e feijão pro comércio na feira do povoado, e da mandioca para ´´o de comerˋˋ.
Morando longe da cidade grande, onde raramente podia ir, seu único divertimento, aos domingos, era a pelada de futebol com os irmãos, jogada com bola de meia no chão bruto e endurecido pela falta de água e batido pelo sol abrasador. Tendo como quase únicas referências os irmãos, preferia os dribles e chutes à bonequinha de sabugo de milho que a mãe lhe fizera.
Certo dia, aos sete anos de idade, estando com o pai num boteco da cidade, ficou encantada e embevecida ao ver na televisão (um luxo que não tinha nem em casa e nem na vila) a seleção brasileira de futebol feminino sagrando-se campeã dos Jogos Pan-Americanos de 2007, batendo as americanas por 5 x 0 no Maracanã !
Chegando em casa contou fascinada, à mãe e aos irmãos, a façanha das meninas comandadas por aquela heroína, a Marta, nascida pobre e no sertão da seca, que nem ela.
A mãe até estranhou a euforia da menina, que não parava de falar, acostumada com as poucas e econômicas palavras trocadas em família, com o quase mutismo do dia a dia repetitivo e cansativo.
E no seu delírio de criança sonhadora, falou com entusiasmo que queria crescer e ir pra cidade grande jogar futebol num campo de gramado verdinho e molhado, diferente do marron acinzentado e seco que a cercava, o que causou risos e zombaria dos irmãos;…onde já se viu, menina jogar bola ?
Dona Quitéria, a mãe, séria e de semblante carregado, foi dura e incisiva: sina de mulher sertaneja é ajudar pai e mãe no serviço de casa e na roça, até virar moça, casar e ter filhos !
A menina cresceu, e com ela o sonho, alimentado pelos jornais de esporte que pedira na cidade, principalmente quando falavam do futebol de Marta, Formiga, Pretinha, Maycon, Cristiane, entre outras, que brilhavam nos grandes times do sul, e até mesmo em outros países, conquistando campeonatos e títulos.;
Aos dezessete anos continuava na mesma vidinha. Pouco estudo, trabalho quase nenhum, e os sonhos sendo desfeitos pela angustiante realidade.
Todos os irmãos já tinham saído para o mundo, e só ela ficara pra cuidar da casa, pois a mãe, enferma, já não mais levantara da cama com ´´doença ruimˋˋ , o que acabou por matá-la. O pai, sertanejo empedernido e resistente, continuava na sua labuta diária e na fé no santo que traria a chuva após cada período de seca.
Não mais aguentando aquela vida, juntou o pouco que economizara, e após enterrar a mãe, despediu-se do pai e partiu para o sul maravilha. Jogar futebol ? Não mais,…aquilo era ilusão de criança. A realidade agora era procurar qualquer trabalho e lutar pela sobrevivência.
Em contato com uma conhecida que viera pra São Paulo dois anos antes, conseguiu emprego de doméstica numa casa de família.
O resto de sua história de vida, infelizmente, seguiu o enredo das histórias de muitas meninas ingênuas e sonhadoras como ela, que acabam seduzidas pelos feitiços e armadilhas das grandes metrópoles: o envolvimento com o filho da patroa, com promessa de casamento, a gravidez por descuido, desinformação e excesso de confiança,…o abandono!
Perdeu também o emprego, pois os ´´sogrosˋˋ não queriam compromisso e problemas.
Recusou-se a fazer o sugerido aborto, e com medo de represálias se tentasse procurar seus direitos, refugiou-se na casa da conhecida, que mesmo a contragosto, a acolheu.
Ao saber que teria uma menina, apegou-se à maternidade com amor e com todas suas forças, já imaginando, quem sabe, um futuro melhor que o seu para a filha,…talvez jogadora de futebol, sua antiga paixão agora projetada nesta criança. Uma nova Marta, uma nova Cristiane ?
O mundo, redondo como uma bola, dá voltas.
E a vida, assim como no futebol, é um jogo onde se perde e se ganha.
Afinal, nem a dura realidade consegue matar os sonhos e a esperança de uma menina que um dia almejou ganhar a vida correndo atrás de uma bola…

VALEU, MENINAS…CADA GOTA DE SUOR E DE LÁGRIMA DERRAMADA, SOFRIDA, DOLORIDA…

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