A desclassificação da seleção feminina na Copa do Mundo doeu. Doeu tanto que fiquei encruado na ressaca, paralisado, incrédulo perante o inesperado. Até perceber que estava fazendo o estilo avestruz que esconde a cabeça no primeiro buraco que encontra e acha que está segura…
Passados esses dias em que só ficava o nariz para fora para conseguir respirar, lenta e esporadicamente senti algumas cutiladas pelo corpo para lembrar que a vida fora do futebol continua.
Mas fiquemos atentos para algumas brevíssimas reflexões a respeito dos modos como consideramos o futebol em nossas vidas: paixão criadora e também avassaladora, destrutiva. Os efeitos do “maracanazzo”, a Copa de 1950 que perdemos dentro de casa para o Uruguai, ainda hoje, 73 anos depois, perduram na alma nacional não como derrota desportiva, mas como verdadeira tragédia nacional, a hecatombe que abalou as estruturas nacionais. Da mesma forma que uma revolução sanguinária provoca inomináveis danos colaterais, a tragédia do “maracanazzo” fez suas vítimas inocentes. O silêncio que se fez no estádio quando da marcação do segundo gol uruguaio – faltando ainda 10 minutos para o final da partida, foi algo tão desolador que constrangeu o capitão da equipe uruguaia, Obdúlio Varella. Diz a lenda que Obdúlio saiu de madrugada pelas ruas do Rio, entrou num bar onde torcedores brasileiros bebiam em silêncio, muitos entre lágrimas. Obdúlio se compadeceu deles e bebeu com eles silenciosamente – a lenda não diz se Varella teria se identificado. Talvez sim, mas provavelmente não, pois talvez o tivessem visto como inimigo. A “hecatombe” revelaria também outros aspectos sombrios da alma brasileira: a culpa exclusiva da derrota atribuída ao goleiro Barbosa, o negro Barbosa, considerado culpado, muito mais ser portador de “um defeito de cor”!
Barbosa, julgado como um criminoso, seria culpado perpetuamente, criminalizado muitas vezes por amplos setores da sociedade brasileira… Em 1994, a caminho dos EUA para a disputa da Copa daquele ano, o culto Carlos Alberto Parreira teria proibido Barbosa de visitar a seleção alegando que o mesmo daria azar. Ou seja, na cabeça do dito “culto” Parreira, Barbosa resumia todos estereótipos de tudo o que o Brasil precisa deixar de ser para se tornar uma grande nação: era perdedor e negro – embora esse último aspecto não tenha sido explícito, e nem poderia. O Brasil ganharia a Copa, mas Barbosa morreria sem obter o perdão dos brasileiros. É, isso, um esporte? Ou uma paixão, no caso, completamente irracional?
Curioso que só com o futebol acontece isso. O mesmo não se dá com o vôlei, o basquete, o tênis, o boxe. Talvez porque o futebol e suas regras básicas seja algo ao alcance da compreensão de qualquer pessoa: até um joguinho de bola no quintal de casa, entre parentes e amigos, todos conhecem as regras, mesmo que sejam regras adaptadas para tais circunstâncias – seja o quintal de casa, a rua, na praia, a quadra de society ou os campeonatos nacionais e estaduais.
O futebol feminino foi acometido da mesma paixão irracional que faz do futebol como um todo o “veneno remédio” do brasileiro, como assim descreve o professor José Miguel Wisniki. Como é praxe no Brasil, vultosas quantias de dinheiro foram investidos não na modalidade futebol feminino, mas na seleção, pois o que interessa não é o desenvolvimento social do esporte, mas a vitória. Vitória que tem o condão de, como se por milagre, anular as mazelas todas, especialmente a quantidade enorme de preconceitos e especialmente as diferenças sociais.
Nada como uma vitória no futebol para o país alcançar a felicidade e almejar o Estado de Bem Estar Social. Isso não deveria constar explicitamente no Manual da Vitória de ninguém, mas era claro, era óbvio que com uma seleção preparada, ainda sob a influência positiva da maior jogadora de todos os tempos (todos os tempos quer dizer “até hoje”), a Marta e sob o comando de uma técnica vitoriosa, não tinha como dar errado: nada além da vitória era admissível. Possíveis condições adversas ou coisa que o valha, a menor incompatibilidade que fosse, estava completamente riscada do dicionário do brasileiro: nos preparamos para ver não a Copa Feminina de Futebol, mas a vitória da Seleção Brasileira.
Vamos nos poupar mutuamente, todos nós, das descrições do que foi a campanha brasileira. Em situação normal, uma campanha normal. Mas não foi uma campanha normal, pois o normal seria a vitória brasileira: nada além da vitória seria “normal”.
A campanha em si, num grupo onde se tinham duas seleções fortes, uma razoável e uma fraca, ficar em terceiro, onde faltou um único gol para a classificação, não seria nenhuma aberração. Exceto para nós, que, em se falando de futebol, de samba ou de carnaval, não aceitamos nada diferente de sermos os melhores.
Se nos serve de consolo, a Alemanha, de amplo favoritismo, se deu mal. Outras potências, idem. Resta saber como os povos desses países que se deram mal encaram suas vicissitudes, suas derrotas, suas “incompatibilidades”. Provoca apenas uma breve comoção que basta falar “nada como um dia atrás do outro” para a vida prosseguir ou causa hecatombes a ponto de abalar as estruturas da nação?
Seja qual for a resposta, é tempo de aproveitarmos a Pia e lavar a roupa!
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Joca
Sociólogo, ex funcionário público. Autor d'A Invenção da Palavra e Pequena História do Mundo (Fábulas voltadas para o universo infantil e infanto juvenil). A publicar: O Presidente Que Burlou o Golpe (fábula política).
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