Ajudo minha mãe de 95 abençoados anos a se sentar no sofá para ver o jogo. Dou-lhe almofada, manta e um pratinho de doce de coco caseiro com ameixa. “A Bélgica joga bem?”, me pergunta. Os “belgicanos”, como dizia um sujeito da minha cidade, não querem mais ser coadjuvantes, eu respondo. “Trata-se da melhor geração da história belga; não perde há dois anos – 24 jogos. É o adversário mais difícil até agora”.
Pela TV, o país é uma festa (salve Hemingway). Fingimos ser feriado, esquecemos as mazelas, a inflação, o governo incompetente e inerte, o dólar alto e a pesquisa Datafolha indicando que 62% dos jovens querem deixar o país – trazendo de volta a onda (cíclica) de exílio voluntário.
Em contradição, assumimos nosso espírito de vira-lata (salve Nelson): escondendo nossa realidade terceiro-mundista na mesma intensidade em que nos fazemos superiores (ao menos no futebol) e, com menosprezo, dizemos “que venha a França” quando nem tínhamos passado pelos “belgicanos” cujo papel no roteiro da “nossa” Copa era voltar para casa depois de levar três ou quatro gols do Neymar.
No dia (noite) seguinte um amigo, a mulher dele e eu fomos ao concerto em homenagem aos 244 anos da cidade. No palco da Concha Acústica, a céu lindamente aberto no meio da mata do parque Taquaral, tendo a lagoa ao fundo a Orquestra Sinfônica de Campinas e Paulinho Moska. O maestro chileno Victor Hugo Toro simpaticamente tenta levantar o ânimo dos brasileiros presentes. “Torci muito pelo Brasil e lamento por vocês”.
Pergunta se o público está feliz com o concerto. Diante da reação positiva, cita a pesquisa sobre os jovens e aproveita o futebol para refletir sobre nossa crise sócio-política. Em um dia triste, disse, “estamos reunidos para celebrar arte e cultura”. Depois, exaltou a sinfônica (a mais antiga do país, prestes a completar 90 anos e patrimônio público a ser preservado), e ensinou que o ponto de partida para reconstruir um país começa na cidade.
Conheço pouco do repertório do cantor e compositor. Então, fui ouvindo uma a uma as canções acompanhadas da voz delicada e reverente de uma moça sentada atrás de mim. Ela cantou quase todas as músicas como autêntica “backing vocal” – logo, acompanhado do (imagino) namorado dela, em belíssimo dueto. Vozes suaves, edificantes.
Fiquei emocionado. Igual ao Zeca Baleiro, “ando tão a flor da pele que qualquer beijo de novela me faz chorar”. Ao final de uma canção na qual o dueto do casal me tocou ainda mais, não resisti, me virei e disse: “que lindo vocês cantando”. Então, olhando o rosto deles, percebo uma beleza interior naquele casal, expressão serena, sorriso de abrir portas, postura de gente em busca da luz.
O concerto está chegando ao fim e uma brisa leve e fria me obriga a pegar o casaco, mas me embanano e não consigo vesti-lo. Então, sinto a mão do rapaz puxar um dos lados do casaco a fim de me ajudar. Moska encerra o concerto com Um Móbile no Furacão e, para meu espanto, uma garotinha (criança) o acompanha cantando bem alto: sou um móbile solto no furacão/ qualquer calmaria me dá solidão.
Se tomarmos a Copa como aprendizado, podemos pensar em mudanças que, em qualquer instância, começam dentro de nós, antes de irem para a família, o vizinho, o bairro, a cidade, o estado, o país. O rapaz e a moça do “backing” devem ter cumprido as primeiras etapas (as pessoais e familiares) e estão na fase de encontrar o outro fora deles. Como têm muito a oferecer, terão generosa tarefa pela frente.
O dia seguinte à derrota do Brasil foi um dia (noite) de delicadezas expressas no concerto, no discurso do maestro, nas músicas do Moska, naquele casal e no inacreditável canto da garotinha. Bons motivos para refletir sobre por onde podemos começar a reconstruir um país.
* Foto: programa de escola de futebol da prefeitura de Maceió