A gente não quer mais marcar gol contra

Das entrelinhas de “Comida” (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto), lançada pelos Titãs, em 1987, pode-se evocar o complexo de inferioridade do cidadão brasileiro, batizado de vira-latas por Nelson Rodrigues, nos anos 1950. Mas a música vai além ao agregar reivindicações.
Ter comida é essencial, mas não basta, pois, como lembra Jesus, o ser humano não vive só do pão – existe anseio por algo mais. Então, os autores completam: a gente quer comida, sim, mas, também, diversão, arte, balé, amor, prazer, dinheiro, felicidade. E tudo por inteiro e não pela metade.
A expressão nascida após o fracasso brasileiro no Maracanã, na final da Copa de 1950, perdeu sentido com o surgimento de Pelé (e de talentos como Garrincha, Rivelino, Tostão, e outros), como se a desviássemos para escanteio.
Ocorre que, de tempos em tempos, ela retorna porque a história do Brasil, em todos os segmentos, se escreve de modo errático. No futebol, por exemplo, ainda ostentávamos a condição de melhores do mundo quando levamos, em casa, o inacreditável 7 a 1 e saltamos do alto do pedestal para um poço cuja profundidade ainda não dimensionamos.
O pentacampeonato consta da nossa narrativa heroica; porém, faz 20 anos que o papel do Brasil em copas resume-se ao de inexpressivo coadjuvante. Segundo regras do roteiro cinematográfico, somos o amigo do protagonista, não o protagonista e, com a mudança de status, ninguém mais tem medo de nós.
Dizem que o time deste ano está bem – falam até em favoritismo. “Dizem” e “falam” são modo de nos referir à seleção desde que ela virou legião estrangeira, conhecida, apenas, por quem acompanha torneios europeus. E, quando joga fora da Copa, enfrenta latinos, africanos e asiáticos – assim, nós, leigos, não podemos avaliar o quanto estamos preparados.
Daí, o susto do 7 a 1 e a surpresa com a Bélgica. Ficamos perplexos e demos vida nova ao vira-latas que habitava em nós. Os alemães viraram imbatíveis, não dormimos imaginando como conter De Bruyne, temos pesadelos com Mbappé e roemos a unha pensando na Argentina – sem falar da poderosa Dinamarca, da Sérvia, da Espanha e da Holanda e alguma possível seleção africana munida de armas secretas.
Na Copa de 1970, desci a avenida Ipiranga na direção da São João cantando ao lado de milhares de pessoas saudando a seleção com o lindo samba de Paulinho da Viola (feito para saudar a Portela), como se ela fosse um rio que passou em nossas vidas e os nossos corações se deixaram levar.
Tanta coisa aconteceu depois. Idas e vindas, mudanças positivas e desacertos, momentos bons e situações terríveis, sonhos de futuro que nunca se concretizaram e até perda de entusiasmo para cantar as belezas do país tropical abençoado por Deus. Hoje, ao me lembrar do samba, inventei a paráfrase “foi um erro que passou em nossa vida”.
Muitos erros. A razão, suponho, é que pensamos positivo, fazemos coisas certas, harmonizamos o passo, treinamos a jogada perfeita, mas, secretamente, torcemos contra nós mesmos. Adoramos marcar gol no nosso goleiro, temos prazer em jogar a bola nas próprias redes e vê-las balançar obedecendo um destino traçado de caminho sem volta do país que experimentou vitórias emblemáticas e derrotas irremovíveis.
Em qualquer lugar do mundo lamenta-se o gol contra. No Brasil, o doloroso ato parece esconder perturbador segredo: tememos a glória de cantar “no time for losers/ we are the champions, my friends”, porque não fomos predestinados à grandeza, ao destemor e ao poder e, portanto, não nos julgamos merecedores.
A propósito, depois do Maracanã (1950), houve Suécia (1958), Chile (1962), México (1970), Estamos Unidos (1994 e Japão/Coréia (2002), conquistas definidoras do princípio de que, no futebol, nem sempre somos vira-latas.
Não se pode dizer o mesmo de outros setores: ora somos grandiosos, coerentes e iluminados; ora humildes, contraditórios e desconcertantes. E, há tempos, estamos desanimados, tristes e sem muita esperança.
Certamente, filosofia, história, economia e sociologia, além de comportamentos condenáveis (racismo, preconceitos diversos, indiferença dos ricos para com os pobres), entre muitos outros fatores, explicam nosso andar errático.
Assim como temos ciência de que qualquer solução para o Brasil terá de passar pela cultura, educação e ética. Precisamos aprender de modo absoluto a não levar vantagem, a não dar jeitinho, a recuperar a ingênua aura de cordialidade, a desenterrar a vocação de alegria, delicadeza e generosidade e a extinguir o cinismo sórdido instalado entre nós.
Como esporte é farto em metáforas e o nosso futebol tem rica história, é possível que ele nos ensine algo. Talvez, estejamos cansados de balançar as próprias redes e, se, perdedores não tem vez, pois somos campeões do mundo, meus amigos, passou da hora de abandonar esse medo atávico – que começa no âmbito pessoal e se expande para o coletivo.
Para isso, comer, apenas, não basta. Nós queremos mais que a miséria, necessitamos do balé, da arte, do amor, do dinheiro – e tudo por inteiro e não pela metade. E, para isso, marcar gols, apenas, não basta. Nós queremos e necessitamos parar de marcar gol contra – essa compulsiva e estranha distorção do nosso complexo caráter.

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