É campeã!

Foi num tempo nada politicamente correto. Eu tinha dez anos e uma grande expectativa: nossa 5ª A jogaria uma partida de futebol contra a 5ª B – o evento seria em homenagem ao Dia das Mães.

A apreensão estava ligada a meu desempenho esportivo. Nunca fui bom em Educação Física. Em futebol, então, era uma espécie de anti-Garrincha: surpreendia – só que no mau sentido.

Naqueles tempos já existia Transtorno do Déficit de Atenção, só não tinha esse nome, e eu certamente sofria daquilo. Certa vez driblei um time inteirinho e entrei com bola e tudo no gol. Estranhei na hora, pois nenhum colega de plantel vibrou com a façanha. É que o time que eu havia fintado, de A a Z, e marcado o golaço, era o meu.

Após o episódio, não me chamaram mais para as pelejas. Só fui escalado no derby do Dia das Mães porque todos os alunos deveriam, em algum momento, entrar em campo para que as genitoras os vissem em ação.

Dormi mal na noite que antecedeu as festividades no grupo escolar. Não podia decepcionar mamãe, o ideal seria até marcar um gol e dedicar a ela.

As coisas não andavam bem em casa. Para variar, no plano financeiro. Comia-se carne (moída de segunda) apenas uma vez na semana. E, enquanto meu pai continuasse trabalhando de frentista de posto, e não conseguisse emprego como advogado, o Santa Claus traria apenas lembrancinhas banais.

Eu notava que minha mãe sofria com a conjuntura. Porém, apesar de frágil, ela sempre mantinha uma postura altiva. O modo como suportava determinadas demandas domésticas, não harmonizava com seu franzino físico. O fato de nunca se desesperar, procurar minimizar as eternas faltas de dinheiro com uma mistura de fé e racionalidade, era nosso sustentáculo.

Por isso, era preciso aproveitar o Dia das Mães para demonstrar todo meu reconhecimento. E eu já havia decidido: isso seria feito nas linhas de um campinho de futebol.

Procurei me concentrar antes da partida. Como já imaginava, não comecei jogando. Só fui entrar em campo faltando cinco minutos para o encerramento do prélio. Foi preciso redobrar os esforços. Briguei por todas as bolas, dividi cada jogada – ora pelo meio, ora pela esquerda, pela direita.

Às vezes, eu mirava o lado de fora do gramado e via dona Irací no alambrado. Ela estava com sua pelerine godê, a touca de tricô, o rosto encarnado pelo vento frio que açoitava São Paulo naquela manhã. Eu a notava e me desesperava. O tempo fluía e o gol não nascia dos meus pés.

A impaciência, é sabido, leva muitos à cólera. A aflição acabou me fazendo dar uma entrada dura no Rona, da B. A expulsão foi inevitável.

Sai de campo aos prantos. Consolava-me somente a ideia de que, ao menos, havia tentado reverenciá-la. Ouvi então os gritos vindos da torcida.

Ao olhar para o meio do campo, minha mãe estava com a bola nos pés. Seu corpo tão fino, quase descarnado, aplicava dribles inusuais em três ou quatro alunos do time adversário. Num átimo, mamãe entrou na pequena área. Chutou a redonda com categoria, os pés calçados em suas meias de nylon. Binho, o goleiro inimigo, caiu no lado oposto: gol!

Após breve deliberação, a diretoria da escola decidiu que o tento materno estava validado. 5ª A e 5ª B empataram em 1X1. As duas classes receberam os troféus das mãos de dona Irací.

Nem tudo era péssimo nos tempos do politicamente incorreto.

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