PELÉ: O FUTEBOL É UM CAXAMBU DE SURPRESAS

PELÉ: O FUTEBOL É UM CAXAMBU DE SURPRESAS

“que voltem sorriso e fé
ao reino do rei pelé.”
(Affonso Ávila, “Cantiga do Rei Pelé”)

A primeira vez que vi de perto grandes craques do futebol brasileiro foi em Caxambu, em 1966, quando uns 40 jogadores pré-selecionados preparavam-se para a Copa da Inglaterra – que acabou em grande frustração No campo do CRAC, clube caxambuense em que atuava um jogador apelidado 109, tive mil e uma emoções, chegando pertinho de Gilmar, Tostão, Manga, Jairzinho, Gérson, Mané Garrincha, Djalma Santos, Murilo, Oldair – que, creio, atuava pelo meu Vasco da Gama. Porém, o impacto maior foi o de ver Pelé.
Antes de vê-lo atuar ao vivo, num jogo-treino contra o Atlético Mineiro, o que mais me impressionou foi a pele de Pelé: aquele ébano, aquela escuridão luminosa, aquele veludo espesso que as imagens em foto ou vídeo não conseguiam revelar. Por aqueles tempos, adolescente romântico, lia Menotti del Picchia e sabia de cor alguns versos do poema “Máscaras”, notadamente aqueles que se referiam a uma mulher loira, “loira como as espigas, como os raios de sol e as moedas antigas”. E, ao ver Pelé, ali de perto, buscava impossíveis símiles que pudessem assinalar a preciosidade daquela pretidão, o intenso negrume que se expandia daquele corpo forte, atlético, ágil.
Ora, vindo de ancestrais escravocratas, inclusive sabendo da trágica história em que parte da família Junqueira foi massacrada por escravos revoltosos em 1833, na fazenda Bela Cruz (onde, por sinal, minha mãe nasceu), eu via sempre os negros na lida, na agricultura, na tiração de leite ou mesmo atuando no futebol de Cruzília, nos times do Sete de Setembro e do Ypiranga; via o Nélson Peixe, o Pé Grosso, mas, outra coisa diferente era ver Pelé, com sua cor de pele tão explícita e, ao mesmo tempo, tão misteriosa.
Tempos depois, ao ler a poesia de Adão Ventura, de quem me tornei amigo, senti outro impacto, mas que, de certa forma, complementava o experimentado em Caxambu. Dizia o Poeta mineiro: “Para um negro/ a cor da pele/ é uma sombra/ muitas vezes mais forte/ que um soco./ Para um negro/ a cor da pele/ é uma faca/ que atinge/muito mais em cheio o coração”.
Curiosamente, o nome da cidade mineira em que vi Pelé ao vivo refere-se a uma palavra de origem africana: caxambu, também conhecido como jongo, conjuga dança, música e versos que evocam a vida dos negros escravizados. Segundo a tradição, o caxambu é dançado e cantado durante a noite de 13 de maio. E foi num dia 13 de maio, no ano de 1833, que alguns escravos rebeldes chacinaram alguns de meus ancestrais. E foi em Caxambu, em 1966, que vi Pelé de perto. E, no Parque das Águas, como na foto em arquivo do Estado de São Paulo exibe, Pelé já merecia ter a sua coroa, seu reino e glória.

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