A PROCURA DE UMA DIGNIDADE

A PROCURA DE UMA DIGNIDADE

“Eu sou do tempo em que crônicas que começavam com ‘eu sou do tempo’, eu, pelo menos, não lia, pois sabia que eram escritas por velhos para velhos e não teriam nada que me interessasse.”
(Luiz Fernando Verissimo, “Outros tempos”, in Time dos sonhos. Rio de Janeriro: Objetiva, 2010, p.43)
Eu sou do tempo em que se dizia que o futebol era para homem. Um dos cronistas que mais admiro, João Saldanha, fez uma declaração que ficou famosa, contrariando, inclusive, aquela cabeça aberta e boa que ele tinha: “Você já imaginou? Seu filho chega em casa com uma menina e a apresenta como namorada. Daí, você pergunta o que é que ela faz, e ela responde: “Sou zagueira do Bangu”. Pega mal, vocês não acham?”.
Lá pelos anos 60 era inimaginável ver menina chutando bola. Até em jogo de botão, lembro-me bem, fui tentar jogar com minha irmã Aninha, ela punha a trave virada de costas para o campo e não sabia apertar a palheta. Entretanto, um dia, na estrada defronte da casa do sítio de meu pai, improvisamos um racha, e uma amiga de minha irmã, apelidada Val, entrou no jogo e foi o que se viu: ninguém segurava a fúria feminina com a bola no pé… Mais tarde, virou professora de educação física e, além disso, canta como ninguém, tive a honra de ter uma canção premiada num festival interpretada por essa doce Val.
Confesso que, quando começou essa onda de campeonato de futebol feminino, fui desanimando de ver. Acho que fui pé frio, pois não conseguia ver a Seleção Feminina ganhar um título, embora admirando a jogadora Marta. A maioria de meus amigos criticavam a lentidão, o marasmo mesmo de muitos dos jogos.
Como sou um cara com os pés plantados nas 4 milhões de linhas da Literatura, associava mulher jogando bola com aquela velha senhora do conto de Clarice Lispector, “A procura de uma dignidade”, que se perdeu nos corredores labirínticos do Maracanã. Agora, fui reler o livro Onde estivestes de noite?, onde há tal texto, e me veio a constatação: à maneira da personagem que não saberia dizer como entrara, o fato é que a mulher agora está dentro, não apenas dos corredores, mas em pleno gramado. “Apenas assim? Tão fácil assim? Apenas assim.” Cito palavras da Clarice que, aliás, é citada no livro supracitado de Verissimo, na crônica “Garrincha”, pois na Copa de 1962, ela era vizinha do autor gaúcho, mas não participou dos rituais das comemorações da vitória da Seleção Brasileira.
Se a velha do conto de Clarice sentia-se “anônima como uma galinha”, e assim era a maioria das mulheres que corriam atrás da bola, pois agora, alterando outra frase desse conto, nunca é tarde demais para mudar um destino: A sueca Pia Sundhage pode levar suas jogadoras a uma dignidade incontestável como representantes de nosso futebol. E, à maneira de Lispector, encerro minha crônica com sucessivas exclamações, pontuando minha torcida:
Tem! que! haver! uma! conquista!

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