“Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar em lassidão tingida de assombro. A lassidão está ao final dos atos de uma vida marginal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo”.
Esta é citação de Albert Camus em “O mito de Sísifo”. Ela nos oferece uma chave de leitura para escancarar o mundo do futebol. O autor retrata o momento da tomada de consciência na vida de um trabalhador. De modo semelhante, penso um torcedor raiz sendo tocado, experenciando sua epifania do absurdo:
Correr, mais uma quarta-feira quase quinta, e ele correndo… correndo novamente, buscando se esconder em meio à escuridão das vielas, fugindo, de um lado da polícia, de outro da nova emboscada no metrô da torcida rival. Ainda por cima ferido na alma pela derrota consumada pelo VAR e pela dor no corpo exposto, provocada pelo cacetete de um PM, que escolhe, muitas vezes, pela cor da pele e não da camisa, quem receberá o golpe mais contundente. Tenta parar. Puxar o ar. Uma pressão no peito. Sente o tempo devagar. Contrariando o momento, os pensamentos, descompassados, estão acelerados…
Subitamente, emerge um pensamento que não consegue identificar a origem, apenas surge. Na imagem que se forma, se vê apenas como uma ficha nas mãos de outros torcedores que se vestem diferentes, e assistem o jogo de outro lugar. Sente ser uma arma para defender a honra desses homens, que não se garantem em um duelo. A sua paixão é lazer para esses nobres, que brincam seriamente com sua vida. Que debocham da sua condição inferior. É manipulado como soldado raso, bucha de canhão.
Ele, num lampejo, pensa: por que os defende? As vitórias para eles representam apenas alegria passiva, que reforçam o sentimento de superioridade simbólica, resquícios de raça superior. Mas para ele não é a mesma coisa.
Eles vivem a vitória com a barriga cheia e as derrotas com mais comida e bebida para afogar as mágoas. Enquanto ele luta, na vitória ou na derrota, de corpo e alma na arquibancada e do lado de fora do estádio. Eles sempre gozam, já ele, constantemente, fica na iminência de contínuos coitos interrompidos.
De repente, a epifania fatal do absurdo. Como operário organizado e fiel, ele sustenta a felicidade dos patrões. Enquanto estão felizes, o suportam, até o elogiam, fazendo-o pensar que um dia até poderia ser como eles, um sócio especial do clube, uma pessoa importante, um torcedor ilustre. Contudo, ele apenas lustra a geral, já eles são lustrados nas áreas VIPs e camarotes.
O mundo real se faz presente. Percebe que sua carteirinha nunca passou ou passará na catraca do clube social. Como militante, não pode frequentar os bailes, muito menos as piscinas. É tolerado apenas quando as circunstâncias convêm. O jogo é feito para que ele nunca seja sócio do clube deles.
Após mais essa derrota, ele voltará a ser periferia, enquanto a vida deles permanecerá a mesma. Para eles o jogo continua, foi apenas um dia ruim, só precisam talvez comprar um outro brinquedo: um novo treinador.
Entretanto, talvez algo tenha mudado nele, com potencial para contagiar mais outros iguais a ele, para um silencioso desespero e preocupação deles.
Alcides Scaglia