Eu, torcedor (lembranças da minha primeira copa)

A primeira vez, a gente nunca esquece. Não parece muito promissor que o prólogo de uma crônica seja um aforismo mais velho que a Copa do Mundo de 1930. Bem, em tempos copeiros, tanto quanto o gol fatal do Rossi, em 1982, da mão divina de Maradona em 1986, ou da bola que Baggio atirou rumo ao céu – para Senna, reza a lenda, em 1994, a pergunta “qual a primeira Copa que você se lembra?” ganha contornos banais. De qualquer forma, todo mundo tem sua primeira Copa. Trata-se, afinal, de um marco de desenvolvimento e civilidade. Arrisco dizer que, se Piaget gostasse de futebol, talvez incluísse a primeira Copa como uma das características que marcam a transição do estado pré-operatório para o operatório concreto no desenvolvimento cognitivo da criança, tamanhas as lembranças afetivas.
Em 1978, até me lembro de meu pai assistindo algo na nossa TV Sharp. Do que me recordo, mesmo, são os xingamentos que ele proferia à pobre antena na claraboia: ele a girava, com algum desespero cômico, gritando para minha mãe: “para que lado fica a Argentina, mulher?”
Parêntesis: confesso que até hoje não sei se ele descobriu para que lado a Casa Rosada e a Nove de Julio estão apontadas. Na época, a gente não tinha bússola. Não foi preciso: logo, logo, uma TV novinha em folha, com adaptador UHF, foi convocada a integrar nossa sala de estar.
Assim, posso dizer que meu debute em Copas, como da nossa TV com adaptador UHF, foi Espanha-1982. Minhas recordações daquele Mundial têm cor de laranja, como o Naranjito – mascote mais legal da história dos Mundiais (Fuleco que me perdoe), cheiro de tutti-frutti – dos chicletes guardados no congelador, que nos davam, além de cáries, figurinhas dos jogadores para colar no álbum da Copa – gosto de Coca-Cola, que nos enlouquecia com suas promoções e sorriso de quem vibrou exageradamente com o fantástico, inesquecível, empolgante, espetacular jogo de estreia do Brasil contra a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Não me recordo do que comi no jantar de ontem, mas posso afirmar, sem googlada alguma, da falha cometida pelo Waldir Peres, aos 39 minutos. O Brasil termina perdendo o primeiro tempo para os soviéticos. Na volta, a seleção canarinho inicia o massacre à equipe vermelha. O time deles não via a cor da bola e dava graças a Deus (ou a Stalin) de que Dasaev, discípulo de Yashin, fechava a meta de modo cirúrgico.
Acontece que a gente tinha um doutor, que gostava de operar das suas em circunstâncias emergenciais. Sócrates Brasileiro. Meu primeiro ídolo. De fora da área, ele costura dois e arremata. Não sei se na Espanha, as corujas são animais comuns. Se forem, é possível que uma delas tenha ficado sem ninho. Golaço!
Empatar com os soviéticos não era a melhor coisa do mundo, numa estreia. Também não seria a pior, é verdade. Faltou combinar com Falcão que, com um corta-luz faceiro na intermediária, fez com que a bola encontrasse os pés afiados de Éder, aquele que contrariava, sob os desígnios de Telê – que não botava ponta – o saudoso Zé da Galera e meia nação, antes que a redonda beijasse as redes com toda sua potência existencial. Gran finale O torpedo deixou Dasaev, antes imbatível, imóvel.
Que jogo lindo! Era emoção demais para o coração de um jovem menino de 10 anos de idade. Como foi bonito ver aquela seleção jogar. Uma experiência única. A gente só queria que o mundo parasse para o canarinho voar:
Voa, canarinho, voa
Mostra para esse povo que és um rei
Voa, canarinho, voa
Mostra para a Espanha o que eu já sei.

Vencemos a Escócia, a Nova Zelândia, a Argentina de Maradona (hoje em dia, os jovens diriam que o camisa 10 argentino terminou o jogo no bolso de Batista, nosso volante), até cairmos para a Itália, que tinha Paolo Rossi e Dino Zoff.
Ao contrário de muita gente, não fiquei triste quando o árbitro selou o destino infame àquela seleção, que de tão sublime, resolveu ser mortal na Copa. Foi, no entanto, imortalizada em nossos corações: no período, a chama pelos jogos de bola com os pés na rua, acendeu de um jeito único e que, pela rebatida ou o rachão de rua e os desafios inerentes àqueles espaços, moldaram o fim de minha infância, entrada na adolescência e, no fim das contas, minha vida toda.
Aprendi que ganhei muito mais do que perdi. Construí minhas primeiras referências de mundo. Admiti para mim mesmo, que perder faz parte do jogo. As derrotas, como as vitórias, veem e vão, são efêmeras. Mais legais que as lições é que, quanto aos jogos bem jogados, com gols lindos, daqueles que a gente não cansa de rever, verdadeiras obras de arte, todos eles ficam expostos décadas em nossos museus oculares.
A Copa do Mundo realizada na Espanha, há 40 anos, está na ala mais importante de meu acervo particular de memórias do futebol. Ela foi a única, afinal, com o poder de me fazer a voltar a ter 10 de idade, com cinquenta de vida vivida.
Alcides Scaglia

Obs: agradeço imensamente ao meu amigo e professor de escrita Luís Felipe Nogueira Silva pela ajuda, colaboração e parceria no meu processo de aprendizagem eterna.

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