Não vou mais pintar a rua

Dia 04 de novembro de 2022. Faltam 20 dias pra estreia do Brasil em mais uma Copa do Mundo. Seguramente a Copa que menos tem me empolgado pra torcer. Aquele brilho intenso que senti pela primeira vez na Copa de 1986 vem se apagando.
Antigamente, em épocas como essa, os muros e as ruas de toda a vizinhança eram pintados de verde-amarelo. Algumas pessoas se arriscavam a desenhar os mascotes, caricatura de jogadores e até mesmo da escalação. Eu ficava comparando a criatividade de cada desenho e de cada decoração. A minha rua favorita era a ladeira que ficava em frente à minha casa.
Da janela da cozinha eu conseguia ver um mar de bandeirinhas que davam um efeito visual dos mais bonitos que já vi. Além disso, avistar o meu vizinho riscando o asfalto pra rascunhar a bandeira era o marco inicial da minha torcida.
Os álbuns de figurinha das Copas eram um dos motivos pra eu me relacionar com a mulecada na escola e na rua. A primeira missão era pedir pra algum adulto comprar o álbum e alguns pacotes de figurinhas e depois partir pro jogo de bafo, pra tentar ganhar outras e trocar as repetidas.
Em 1994, foi o auge. Finalmente pude saber qual é a sensação de ser um campeão mundial. Fui coroado como um rei, como se todos os aplausos e condecorações daquele momento fossem dirigidos a mim. Quando o italiano, Roberto Baggio, errou o pênalti e comecei a ouvir o clássico “é tetraaaa, é tetraaaa!!!!”, chorei de soluçar.
Dali pra frente comecei a me achar o tal. Em 1998, o Brasil tinha o Ronaldo Fenômeno, que herdou o trono do baixinho Romário e passou a ser a maior estrela do futebol. Todo menino que eu conhecia queria correr como o Ronaldo, cortar o cabelo como o Ronaldo, ser dentuço como o Ronaldo e fazer gols como ele. Ainda que hoje não sinto um pingo de vontade de ser como o Ronaldo Nazário, o empresário.
Em 98 o Brasil, que nitidamente tinha o melhor time, perdeu a final pra França, do magistral Zinedine Zidane. Derrota amarga, o clima na rua ficou horrível, parecia um enterro, todo mundo se olhava com cara de decepção, sem saber o que dizer, sem ter palavra digna pra consolar.
Quatro anos depois, a vitória de 2002 recarregou os ânimos. Na Copa da Coréia e do Japão os jogos eram à noite ou de madrugada. Nessa época eu trabalhava no período noturno e um telão foi instalado no trabalho pra gente assistir aos jogos. Na final organizei um churrasco em casa às 09 horas da manhã. Chamei a família e os amigos e pudemos comemorar o pentacampeonato. Senti um clima de catarse coletiva. Como foi bom ser campeão naquele dia.
Em 2006, eu estava na universidade e cheio de críticas sobre o futebol. Aflorado com as discussões estudantis eu via o futebol como alienação, mas bastou chegar a Copa que lá estava eu, instalando uma tv na república e ansioso com a partida.
Daí pra frente, as Copas de 2010, na África do Sul e, principalmente, a de 2014, no Brasil, deixaram nítido o quanto os interesses comerciais e elitizados são prioridades nessas competições. Cheguei em 2018, na Copa da Rússia, sem vontade de vestir a camisa, enfeitar as ruas e torcer.
A cada ano fui ficando com menos empolgação. Ainda mais agora, que as cores do país foram monopolizadas por um grupo político fascista e boa parte dos jogadores não se posicionaram sobre assuntos importantes, como foi na pandemia. Sem contar os que estão envolvidos em casos de corrupção e abusos contra as mulheres.
Com certeza vou me organizar para assistir os jogos da Copa do Qatar, principalmente os da seleção, mas com muitas críticas e mágoas acumuladas.
Assim como os meus vizinhos, não fiz bandeirinhas, não comprei camisa e nem pintei a rua. Até o momento, pra mim, essa é uma Copa descolorida, uma Copa desbotada, uma Copa de brilho capenga.
Admito: Há um menino aqui que ainda deseja ver todas as guias e asfaltos multicoloridos, sem essa de verde e amarelo, que quer escrever um recado como o da rua Francisco Bicalho: “não é política, é Copa”. Esse menino torce para que um dia os jogos tragam a magia de antes e que ele possa se sentir novamente como um rei, sorridente e campeão pelas ruas da cidade.
Mas sinto que será difícil, pois faz um tempinho que a seleção e o Brasil vem amarelando (e feio), no jogo da vida.

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