1970: noventa milhões em ação.

Havia uma nuvem negra sobre o país, mas se não percebia. O menino de pouco mais de oito anos que se esgueirava pelas ruas ingênuas de uma cidade do interior pernambucano não alcançava a tensão daquelas horas. Tudo recendia à tranquilidade inexistente. Éramos noventa milhões em ação, como cantavam os versos de Miguel Gustavo. Compositor de hilariantes sambas-de-breque cantados por Moreira da Silva, Miguel se entregara ao ufanismo em voga.

Éramos noventa milhões em ação…

Há poucos dias disseram-me que a principal banca de revista de Brasília está em processo de falência. Sobrevive dos leitores de gibi e da venda das figurinhas da Copa. E ainda me espanta a comoção gerada pela disputa. Somos 209 milhões em ação? O que sei é que, em 1970, as bancas de revista tinham nobreza cultural. Meu pai, acreditando que eu um dia viria a ser alguém, mantinha uma conta aberta na banca de seu Odilo. De posse do recurso, eu podia ler clássicos da literatura brasileira e universal, fazer experimentos científicos, me aventurar nas vagas marinhas de Meio Quilo, viver com a Turma da Mônica e até escutar o que havia de melhor na Música Popular Brasileira.

Éramos noventa milhões em ação e a Seleção Canarinha chegava ao México com garbo e esplendor. Nesta euforia, papai comprou televisão nova, mesmo irritado com o país subdesenvolvido que não dispunha de TV em cores. E as imagens daqueles dribles e lances nos encantavam. Lembro-me bem daquele universo sem cores hoje ofuscado pelas imagens brilhantes agora exibidas amiúde.

Parecíamos fadados a ganhar todos os desafios, apesar de começarmos a Copa perdendo para a Tchecoslováquia. Havia uma espécie de balé no campo, lembro bem daquela primeira partida, tudo tinha cores de beleza. E vencemos por 4 a 1, de virada. Creio que não tinha muito entendimento sobre o que se passava, mas sentia o orgulho de ser vencedor, mesmo usando pés alheios. E nos postamos diante dos imensos ingleses, os campeões do mundo, num jogo tenso. Sofremos durante quase toda partida até que no quase final Jairzinho nos salvou com um mísero gol, o bastante para seguirmos de cabeça erguida. Tínhamos ainda que enfrentar a Romênia. Com a ganha de um vampiro, aquela gente pulou em nossa jugular. Lembro que papai gritava e torcia e parecia estar em campo. No final do sofrimento voltamos a ganhar por 3 a 2. Estávamos na próxima fase.

Por um momento, mesmo breve, pude voltar para a rede, para a leitura de Meio-Quilo, o Marinheiro, um gibi que contava as agruras marítimas de um homem fadado a ser um eterno gauche. Eu tinha certa identidade com aquele moço magro, baixo e desajeitado. Baixo, magro e meio inábil, era o pior jogador de futebol de minha turma. E mesmo comprando a bola, terminava sempre no banco. Daí corria pra casa e me deitava na rede, e me debruçava em leituras infindas.

Nada no entanto que me afastasse da televisão no dia seguinte. O Brasil estava nas quartas-de-final. E só nos interessava ver Pelé e seus companheiros dando aulas de arte ao mundo. Lembro que um dia, entrando em casa, papai assistia a um jogo qualquer: É do Brasil? Não, meu filho, são só dois timinhos. E logo vimos o Brasil enfrentar o Peru, um time ofensivo, uma equipe disposta a botar água no chopp que eu ainda não bebia. No final ganhamos por 4 a 2 e seguimos na direção da felicidade.

E a felicidade me chegava com os ritmos do Brasil, enquanto cantava: Seu garçom faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada. Vá perguntar ao seu fregues do lado qual foi o resultado do futebol… Essa é a nova música da copa?, queriam saber. Não, é Conversa de Botequim, composta por Noel Rosa e Vadico em 1935… e deitava a erudição que lia na coleção Música Popular Brasileira que me chegava pela banca de jornal.

Nas semifinais um confronto sul-americanos, uma revanche da final da Copa de 1950, Brasil e Uruguai. Apesar de Pelé, depois de driblar o goleiro, perder um gol feito, ganhamos mais uma: 3 a 1, de virada. E veio a final, Brasil e Itália. Hoje leio o relato nos sítios esportivos: “O Brasil saiu na frente, com Pelé cabeceando um cruzamento de Rivellino no minuto 18. Roberto Boninsegna empatou para os italianos após falha da defesa brasileira. Gérson bateu um forte chute para o segundo gol, e ajudou na marcação do terceiro, com um lançamento de falta para Pelé que cabeceou para Jairzinho. Pelé finalizou sua grande performance saindo da marcação da defesa italiana e assistindo Carlos Alberto Torres no flanco direito para o gol derradeiro. O gol de Carlos Alberto, após uma série de passes da seleção brasileira da esquerda para o centro, é considerado pela BBC o gol mais bonito de todos os tempos. Dos onze jogadores do time brasileiro, dez tocaram na bola antes do gol.”

Éramos campeões do mundo. Quatro a um sobre a Itália.

A taça do mundo é nossa… voltamos a cantar, dentro do Cine-Teatro Apolo, vendo o Canal 100, uma velha canção composta em 1958 para comemorar a vitória da Copa da Suécia. Tínhamos a alma leve e o mundo nos pertencia.

O futebol somente voltou a me interessar quatro anos depois. Neste meio tempo li o que pudia. Cheguei a ensaiar pretensões científicas. Todas as quinzenas ia à banca de revista buscar meu exemplar de Os Cientistas. Comecei fazendo uma pilha elétrica com Alexander Volta, promovi algumas explosões domésticas e quase me tornei cientista, mas comecei a ler a biografia daqueles homens de gênio. Foi quando vi que suas vidas eram tão fascinantes quanto seus experimentos. E aí passei a contar histórias, deitando por terra o sonho de futuro que papai um dia sonhou pra mim.

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