Meu gastroenterologista, a pessoa que melhor me conhece por dentro neste mundo, disse-me um dia, analisando minha endoscopia no acrílico: “O estômago é o seu órgão de choque. Tudo você segura aí, absorve aí, ressente aí!”. Assustei-me com aquilo, mas não pude negar: foi ali que aprendi em definitivo que sentir é algo complexo e se dá via muitos órgãos.
Nessa Copa não quero torcer com o fígado, destilando ressentimentos. Mas o meu coração de poeta, como diz o Caetano, “projeta-me em tal solidão”, que desta feita, nessa festa, como se diz, eu não quero beber nem uma colher de ponche como xarope.
Vejo o menino Ney, nosso craque, passeando com Danny, seu babá, fazendo arminha, postando a sexta estrela como sua, em evidente delírio egóico, queimando a largada no Instagram. Vejo o número de operários mortos na construção dos estádios, não vejo mulheres na torcida, vejo flâmulas LGBTQIAP+ expulsas das partidas e me pergunto, como, com que órgão torcer nessa Copa do Qatar?
Menino criado à base de álbum de figurinhas desde 1970, resolvi torcer com a cabeça apenas. Mas isso é torcer? Meu cérebro é um torcedor chato, se apega em estatísticas e esquemas, parece um comentarista da Globo. Desisto. Quero um órgão de boa, sensível, feito pra não se queimar, mas que entenda de plasticidades, a pele, por exemplo. Quem sabe? Mas posso ter alguma reação.
Pensando bem, podia torcer com as amígdalas ou com o apêndice, que, superneutros e sem efeitos colaterais, quando não inflamados, discretões, levariam-me a uma rápida superação de qualquer trauma ou contusão mais grave.
Uma opção boa seria torcer com equilíbrio. Por isso, pensei em vibrar com certa simetria, torcendo com pulmões e rins, fazendo uma marcação dupla no peito, garantindo poucos vazamentos na linha defensiva dos leucócitos, impedindo ataques cardíacos adversários e eventuais crises de T.O.C.
Para aturar FIFAs, CBFs e CIAs, os intestinos também poderiam bem me servir, torcedores naturais que são, engolindo sapo, aceitando merda há tanto tempo. Eu, que jamais torceria com unhas e dentes, olho por olho.
Acho que, na dúvida, eu poderia ficar aqui, na minha torcendo de um modo indiferente, particular sei lá, ligado na Copa pela batata da perna esquerda ou, com certa soberba, com o mindinho da mão direita levantado. Mas não conseguiria. Na real, acho que tudo já estava decidido em mim faz tempo, e agora é que me dou conta: como cronista, acho que o melhor que eu faço é torcer com a língua.
(Ilustração: Dodó)