Da cabeça aos pés

Da cabeça aos pés

*A poucos dias da Copa,
homenageio a seleção de
todos os tempos, pelo menos
pra mim.

A pose é a de um time de futebol de salão, três de pé com peito estufado e uma dupla sentada na frente.
É fácil ver as mudanças que os mais de quarenta anos trouxeram nos cabelos, nas cinturas, nos olhares. Porém, um detalhe, talvez sem importância, cutuca minha memória. Um deles está de sandália havaiana. Eu conheço aquele pé. Aliás, conheço todos os pés da foto.
Por causa do futebol, ou porque brincávamos descalços, ou porque estávamos sempre na praia, ou por outro motivo que não vou saber explicar, eu reconheceria qualquer um dos meus cinco amigos sessentões por seus pés. O retrato que vejo chega por meu irmão e mostra o grupo num churrasco carioca. Um encontro anual do nosso time de futebol, que durante uma década nos unia nas tardes de domingo. Era aquele jogo no campo de terra, na Barra da Tijuca, o compromisso mais importante da semana, pelo menos da minha.
A gente mesmo organizava os jogos. A bola Drible, de couro branco, vinha no ponto, nem cheia demais que ficasse dura, ou murcha que não rolasse macia. Se chuva ou vento apagavam as linhas de cal, refazíamos a marcação. A rede fixávamos nas traves e prendíamos ao chão com paus e pedras. O gol ganha vibração quando a rede estufa, murmurando um “chuá”. E naqueles duelos, o placar podia passar de 10 x 10.
Se surgia um imprevisto desfalque lá íamos em busca de um reserva, até festa de aniversário interrompemos. Para apitar chamávamos o Argentino, o sorveteiro do Fazenda Clube Marapendi, com seu inseparável relógio a marcar 40 minutos pra cada tempo, sem acréscimos. À sombra de eucaliptos, nossa torcida miúda e fiel: seu Orlando, Valdir e Edgar. Nos momentos de sufoco, um deles palpitava, já que nunca tivemos técnico.
As camisas verde e branco, com largas listras verticais e números pretos, comprávamos com a vaquinha apurada na vizinhança. Conga, Ki-chute ou o pé descalço completavam o uniforme.
Na foto, os cinco rostos me relembram dos dez pés amigos e seus cinquenta dedos.
Fred, xerife da zaga, era dono de arcos altos e bem desenhados. Fosse o pé uma ponte, como a Rio Niterói, ali seria o vão central, passagem de barcas e transatlânticos. Como num encaixe da sola côncava, o peito convexo e largo. Seria esse o segredo do petardo de nosso batedor de faltas? Fred se orgulhava da casca grossa do calcanhar, capaz de apagar pontas de cigarro, sem prejuízo à áspera carapaça. O pé, de dedos pequenos e unhas bem cortadas por dona Santinha, não era comprido. Fred calçava 41.
Sérgio Calá também nunca sofreu com pé chato e batia bem com os dois. Quando ainda não tínhamos barba, os pés dele já eram peludos. Dois tufos. Um, mais volumoso, no peito do pé, o outro no dedão. Pés magros, ótimos para controlar a pelota e cobrar escanteios. Os dedos finos tinham um certo molejo e ele dobrava a parte de cima, ali onde ficam as unhas, para fazer embaixadinhas. Conga azul, 38.
Orlando sofreu bullying pelos pés avantajados. Os dedões eram quase do tamanho de um limão e as unhas se espalhavam naquele latifúndio. Orlando deixava que crescessem, passando fácil do limite dos dedos. A gente implicava, “vai furar a bola”, “que chulé”. Ele, bom malandro, ria da implicância, enquanto as unhas cresciam livres. Orlando era titular da lateral direita e se a marcação apertava, despachava a bola para onde o nariz ou o dedo apontasse. Nosso 44 bico largo não inventava.
Recordo que o dedo maior do Carlinhos, ponta direita arisco e raçudo, era quase quadrado. Os outros quatro desciam como degraus bem medidos de uma escada. Carlinhos também viu os pelos do pé brotarem antes dos primeiros fios de bigode. Os tornozelos eram saltados, do mesmo jeito que a parte traseira do calcanhar. Esguio, nosso velocista não tinha gordura para esconder os ossos. Pra sapato ou tênis, 38 não sobrava nem faltava.
Os pés do Roberto empatavam com os do Fred e só perdiam em tamanho para os do Orlando. É que meu mano era o veterano do time. Não tinha mais o que crescer. Quando experimentávamos as emoções dos 15 ou 16 anos, ele já contava 19 ou 20. E aqueles pés, capazes de precisos lançamentos e cobranças milimétricas de falta, já aceleravam e controlavam a embreagem de um Corcel rebaixado com rodas cromadas. Roberto pouco usava o canhoto. Sobrecarregado, o direito sofria com unhas quebradas e encravadas. Antes dos jogos, nosso capitão preparava uma proteção de esparadrapo e a gente sentia de longe o cheiro da cânfora. Com duas meias para não machucar os dedos já abalados, ele usava 41 com palmilha. Até hoje cuida bem dos pés, que garantem pedaladas e caminhadas sem tropeços.
Por último, conto dos pés de quem não saiu na foto. Os meus, que ganharam veias mais grossas e salientes. Em compensação os poucos pelos da juventude se foram, surgiram também rugas, escondidas na lateral externa. O direito permanece meio centímetro menor que o esquerdo. Meu pai – que sofria com calos e unhas de pedra – dizia que era “defeito de fabricação”. Não reclamo do fabricante e tampouco dos pés, que até hoje me sustentam, mesmo quando passo dos limites de peso, exaustão ou outros. No entanto, se recebesse a visita de um Gênio, aquele da lâmpada mágica, pediria uma sutil mudança. Meu dedão cresceu menos que o segundo dedo, aquele mais fino. A desproporção entre o gorducho e o espigão é bem feiosa. E então, seu Gênio, seria possível pelo menos igualar, perguntaria.
Na infância, ki chute número 34, quis entender porque meu pé era diferente. Minha avó, que sabia de tudo e tinha joanete, me respondeu, depois de esfoliar o calcanhar com pedra pome e calçar sua sandália de verniz.
– Ele nasceu assim por que sua mulher vai mandar em você.
Como disse, vovó sabia de tudo.

* Dedico essa crônica aos outros craques-peladeiros do Verde e Branco com seus habilidosos pés e inesquecíveis apelidos: Tuti, Magú, Suburão, Caldeira, Fusca, Bitola, Coronel e Tubarão.

Compartilhar:

Curta nossa página no Facebook e acompanhe as crônicas mais recentes.

Crônicas Recentes.