O FANTASMA DE 66

Numa tarde de julho de 1966, eu era escoteiro (confesso e indesculpável deslize infanto-juvenil) em plena armação de um acampamento numa fazenda infestada de carrapato. À primeira estacada na barraca, apareceu do mato um dos chefes de patrulha. Gago.
– Hun hun hun gria um a ze ze ro.
Na segunda martelada, ele de novo:
– Hun hun hun gria do do do dois a ze ze zero.
E com a barraca troncha, se debatendo contra a chuva e o vento, a Hungria fechou o placar. E se deu a borrasca.
Não durou muito a aventura escoteira chuvosa e dia seguinte arrumei um jeito de voltar ao quentinho da minha cama e à comidinha caseira. Mas ficou o trauma da Copa mais desastrosa do Brasil, eliminado na primeira fase.
Tempos depois, li que os jogadores na pré-temporada trocavam os treinos por desfile em carros abertos promovidos pelos prefeitos das cidades que acolhiam os “futuros heróis do tri.” Deu no que deu.
O trauma não se apossou só de mim. Nelson Rodrigues criou o personagem o Fantasma de 66, que atormentava suas crônicas sobre preparação para Copa de 70, gato escaldado fazendo vista grossa ao surgimento da maior seleção de futebol de todos os tempos.
Claro, que o Brasil foi tri, tetra e penta, com seleções cheias de craques e talvez menos virtuoses como em 70. E também perdeu outras tantas, por diversos motivos, por manobras safadas da ditatura argentina, injustiças, caprichos do futebol, acidente, displicência, soberba e até entre safra de talentos.
Mas isso não vem ao caso no momento em que mais uma Copa bate à porta.
Apesar da boa preparação e algumas boas revelações, Nelson Rodrigues é imortal, vive à sombra das chuteiras do mundo. Eterno Nelson.
No próximo dia 24 vou receber amigos de camisa amarelinha (agora, finalmente honrada) na sala de TV, que já ganhou o título de “Verezão do Campo Pequeno”.
Vou enfeitar a alma e as paredes. Vou embandeirar a varanda. Vou servir pão de queijo e vinho do Alentejo, pipoca e brigadeiro para os miúdos.
Espero bonita a festa, o pá, mesmo porque Portugal estreia um jogo antes no mesmo dia.
Mas o Fantasma de 66 é insistente. Apesar de senil, ronda minhas noites, na paranoia de uma eliminação precoce e vexatória, nunca se sabe.
Acordo suado por uma voz gaga do além:
– Sér sér sér via um a ze ze zero.

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