MEU DOMINGO CHUVOSO.

Andava sentindo o coração batucar por Letícia. Trabalhávamos juntos e a cada almoço, a cada reunião,
a cada olhada de viés no seu notes, sentia a queimação.
Claro, acompanhada de uma certeza que me faz
companhia desde a adolescência: mulher bonita, charmosa, de sorriso matador e muita personalidade era muita areia para meu Fiorino. Mas a cada aproximação, seja para falar de trabalho, seja para seja para trocar abobrinhas no canto do café, o baticum esquentava. Tanto quanto crescia o areal que supunha não caber na minha caçamba. E de certeza e incerteza, de coragem e covardia, de desejos e de “se-liga-palhaço”, não conseguia dormir. É como se Letícia compartilhasse comigo noites insones. Neste sábado chuvoso não foi diferente. Só que o celular tocou às três da madrugada.
– Alô?
– Desculpe, te acordei?
– Não, sim, não sei…
– É a Lelê.
– Lelê…
– É a Letícia.
Gulp.
– Queria que você agora só me chamasse de Lelê.
Humpft.
– Não consigo dormir.
– Nem eu, Leti…
– Lelê, me chama de Lelê.
– Lê- lê.
Me belisquei, me estapeei.
– Você está bem?
– Claro… claro… mosquitos me atacam.
– É porque você é doce.
Gulp.
– Vou direto ao assunto: nãoconsigodormirsópensandoemvocê.
Pronto, falei.
Gulp.
– Oi, desculpe… eutambemnãoconsigodormirsópensandoemvocê. Pronto, falei.
– Bem, já que estamos conversados…
– Não!! Não desliga!!!
– Não! Não quero desligar!!! Quero fazer uma proposta.
Gulp.
– Amanhã de manhã te pego no seu apartamento. Vamos dar uma fugida nesse domingo chuvoso. Adoro domingos chuvosos.
– Amanhã????!!!!! Nãoooo!!!!!
– Não?
– Não, não!! Siiimmm! Você sabe onde eu moro?
– Claro, sei mais de você do que você imagina.
Às 11:32, Letícia me pegou. Já estava na portaria. Ainda
me beliscando.
– Oiê! Te acordei ontem, né…
– Por um bom motivo. Onde vamos?
– Surpresa.
– Vou fechar os olhos.
– Tá meio borocochô essa Copa, não acha?
– Sei lá. Não ligo para futebol.
– Você é dos meus. Ópio do povo. Escapismo barato.
– Sim, sim…
– O bom é que está tudo vazio. Ninguém vai encontrar a gente.
Letícia pôs a mão direita na minha perna, sem deixar de olhar para frente. Entrelacei seus dedos aos meus. Em silêncio, nossas mãos se apertaram, afagaram-se sem olhar. Depois de quarenta minutos, o imaginário tocou bumbo e tamborim no meu peito, a respiração virou suspiro, a excitação romântica se apossou de cada poro meu.
– Vamos para serra, é?
– Adoro. Estrada vazia, chuvinha fina, fog londrino.
– Legal.
– Tem um bistrô antes de Correias, uma delícia.
– Delícia.
Chegamos. Não era apenas um bistrô escondido nas montanhas. Em volta da construção charmosa, meia dúzia de chalezinhos bem distantes um do outro.
– Desculpe, hoje o bistrô não abre.
– Jura?
– Mas se quiser, temos serviço nos chalés.
Lembrei da síndrome do Fiorino. Mas estufei o peito.
– Tudo bem pra você, Lelê?
– Claro. Era isso que eu queria. Vamos?
O chalé era o mais distante da recepção. Acendi a lareira,
deixamos janelas em frestas, contemplamos a neblina. Eu, atrapalhado, tinha que dizer alguma coisa
– Gosto desses ares ingleses.
– If a fell in love with you, would you promise to be true?
– Beatles e Rita Lee.
Nada mais falamos. Um beijo suculento explodiu e sem
perceber fomos nos despindo e nos jogando na cama, algo como sem tempo e em câmera lenta, como se velhos amantes clandestinos fossemos. Estávamos encubados um para o outro. Tudo ia bem, preliminares perfeitas, mergulhos em geografias mútuas, descobertas de recantos e sabores, suaves suspiros, discretos ronronares. Até que olhei o relógio. Diabo de
relógio: 16:12. A partir daí a Fiorino enguiçou. Tudo travado, congelado, suado. Lembrei de Caetano: nada pintou direito. Letícia ainda tentou todos os esforços de mulher despachada e voluntariosa, mas nada. Eu suava na testa, me doía o ciático, me fervia a consciência. Cansado de tentativas, esmoêssemos. E ouvi o que de pior um homem inseguro poderia ouvir.
– Relaxa, acontece.
– Desculpe, sou um atormentado.
– Vou tomar um banho, a gente desce a serra. Na boa. Amanhã no trabalho, a gente dá bom dia um para o outro e tudo bem.
Vi Letícia desaparecer no vapor do banheiro. Ouvi o relaxar do chuveiro quente massagear a dona estonteante daquele corpo estonteante.
– Meu Deus.
Foi o que disse ao olhar mais uma vez o relógio. Vesti a calça e parti pela neblina até a recepção. Sem fazer alarde, grudei os ouvidos na janela do bistrô. Uma televisão ligada soava Galvão Bueno.
– Brasil e Suíça 1 a 1. Você esperava uma estreia dessas, Walter Casagrande?
Congelei. Soube, enfim do resultado. Perdi tempo vendo os lances capitais. Um imenso sentimento de culpa me assaltou. Corri de volta para o chalé, quando vi Letícia secando os cabelos. Entrei vociferando.
– A culpa é sua! A culpa é minha! Para quê árbitros de vídeo? Empurraram o Miranda no gol deles! Não viram o pênalti no Gabriel Jesus! E eu aqui, nesse
fim de mundo, sem poder fazer nada!
– Hein?
– Não deveria nunca estar aqui!
– Hein?
Letícia me olhou surpresa e com um certo medo.
– Desculpe, sou um atormentado ridículo. Esquece a tarde de hoje.
E nada mais dissemos. Descemos a serra em silêncio constrangedor. Dia seguinte no trabalho, nem bom dia um para o outro.

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