Pelas décadas de 30, havia um peão boiadeiro na fazenda do meu avô, nas fronteiras indefinidas entre Minas, Espírito Santo e Bahia, de nome Firmino. Era um caboclo forte, de sorriso reluzente, mas nem sempre estava na linha de frente de levar boiada pra lá e pra cá. Ficava pelos flancos da manada, tocando as reses com
berrante ou gritos de ôs, ôs, ôs. Mas quando um boi se desgarrava, era Firmino convocado para galopar atrás do fujão e trazê-lo de volta à normalidade pacata do caminhar dos animais.
Meu avô, que não só era treinador do time de futebol da peãozada da fazenda, mas um apaixonado pelo rude esporte bretão, já chamava Firmino de “meu reserva de luxo.”
A cidadezinha mais próxima ficava a uns 4 km da sede da fazenda, dos currais e pastos principais. Lá havia o de praxe: igreja, bordel, pracinha, coreto, grupo escolar, delegacia, casa de secos e molhados, posto médico e um consultório de dentista.
O dentista era o Dr. Osório, figura respeitada e um tanto espevitada na pequena sociedade local, que gostava de experimentar tratamentos novos e táticas odontológicas
revolucionárias em seus pacientes. Detalhe: não havia anestesia na época. Ferrinhos e boticões eram os únicos instrumentos disponíveis. Mas o prático apreciava uma invencionice, mesmo assim.
Numa certa manhã, Firmino acordou com a bochecha inchada e os olhos embotados de tanto urrar a noite de dor de dente. Meu avô, cuidadoso com seus peões, colocou Firmino no carro de boi e em menos de quatro horas estavam no consultório do Dr. Osório.
– É dor dos diabos, Dr. Osório. O coitado nem consegue falar.
Dr. Osório sentou o caboclo na cadeira, aprumou-se no avental e ajeitou a gravata. Arregaçou as mangas, deu duas fisgadinhas na boca do infeliz com um ferrinho, e logo depois pegou o boticão. Pediu ao meu avô para segurar os braços do coitado, e com as coxas prendendo as pernas do paciente, Dr. Osório enfiou o boticão naquela boca imensa e trêmula. Puxa para cá, puxa para lá, aperta daqui, entorta dali, o dente, enfim, saiu,
sob os urros ensurdecedores de Firmino.
Dr. Osório pega o boticão e coloca seu troféu diante lâmpada sobre a cadeira. E sorri.
– Este dente está bom. Agora vamos testar o outro.
Não sei porque esses dois personagens emergiram dos baús das histórias contadas de família.
Aliás, sei sim: depois desse Brasil 2 a 0 no México, vejo um Firmino, um perfeito reserva de luxo, feliz diante de um microfone, sorrindo com todos os dentes. E logo depois, um Osório com cara de doutor, inventor de táticas e outras histrionices, urrando para as câmeras.
Devia estar sentindo uma dor danada.
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José Guilherme Vereza
José Guilherme Vereza é publicitário, redator, diretor de criação, escritor, ficcionista, cronista, roteirista. Pós graduado em Pedagogia, acrescentou o “professor” nessa lista de coisas que gosta de fazer. E não para por aí. É pai de quatro (objetiva e subjetivamente), avô de dois, metido a cozinheiro, botafoguense típico, ama escrever. Ter sido convocado para o timaço do Crônicas da Copa é seu imodesto gol de placa.
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