Em 28-11-2022 o Brasil se classificou antecipadamente para as oitavas de final da Copa do Deserto. Teve seus méritos, evidentes, especialmente por estar sem sua estrala maior, o Neymar. Mas, convenhamos, o jogo contra os pernaduras suíços pouco ou nada tem de empolgante. Devemos brindar com chocolate suíço e se tiver amigo suíço, vale um pouco de gozação – mas sem exagero. Antigamente ganhar de pernaduras era obrigação, mas os tempos mudaram. E pra todos os efeitos, futebol é tão incrível que em nenhum outro esporte se oferece tanta vez ao imponderável… E quem melhor se aproveita do imponderável é a Alemanha: em 1954 venceu a Hungria de Puskas que então encantava o mundo e 20 anos depois (1974) desbancou a Holanda de Cruyff.
Mas o que de fato me encantou neste dia 28 de novembro foram dois jogos envolvendo africanos. Camarões 3 X 3 Sérvia e Gana 3 X 2 Coréia do Sul. Resultados empolgantes por tudo o que aconteceu em campo, nada recomendável para cardíacos, pois o placar se movimentava com a sutileza de uma montanha russa.
Os africanos sempre são considerados azarões, desde que Camarões foi revelado ao mundo, se não me engano em 1990, com o soberbo atacante Roger Milla. Sempre se espera que os camaroneses aprontem alguma travessura, à moda do nosso Juventus da Mooca, apelidado de Moleque Travesso. Perante o futebol burocrático que a maioria das equipes apresentam, que muitos chamam “futebol de resultado”, os africanos são um sopro de vida, subversores da ordem carcomida. Pequenas nações, times modestos que partem para cima de adversários gigantes com um destemor anárquico que beira a irresponsabilidade. Mas essa impressão – irresponsável – é apenas aparente: o “destemor anárquico” é apenas o modo como encaram a vida e suas vicissitudes – se é que a palavra vicissitude faz algum sentido para países pobres, da África ou de outros lugares, levando-se em conta os desafios que enfrentam vidas afora.
Ver os africanos jogar com tanta alegria é motivo para se abrir um sorriso – desde que você não seja uma suas potenciais vítimas. É a alternativa da sonolenta previsibilidade que se vê na maioria dos jogos: “previsibilidade” irritante, quando você vê o cara pegar a bola e adivinhar que ele vai tocar para o companheiro ao lado, que vai devolver e recomeçar. Ou recuar para o goleiro. Já vi jogo onde a bola estava no campo de ataque e foi sendo recuada até o goleiro, a quem coube dar um chutão. Tudo por medo. Medo do adversário tomar a bola ou, pior, medo de errar. Os africanos subvertem esse comportamento acomodado que deve ter se instalado no espírito humano desde que adotou o sedentarismo: quanto menos esforço (e risco!) melhor! Os africanos impõem um quê de farra na sisudez. Tem algo de Garrincha, que era chamado “A Alegria do Povo”, a quem muita gente apreciava vê-lo entortar adversários. Diz a lenda que muitas vezes Garrincha prendia a bola de tal forma que só prosseguia a jogada quando o adversário abria as pernas dando a chance de uma caneta… Não duvido!
Nos jogos de ontem, pelo menos um lance ficou marcado. Não lembro qual jogo, se Camarões x Sérvia ou Gana x Coréia do Sul e essa exatidão – tão presente nos comentários repletos de estatísticas – pouco importa. Poderia ser ganense ou camaronês: num contrataque, o que conduz a bola tem a opção de tocar para o companheiro, mas ele prefere a finta no adversário desequilibrado. Finta uma vez, mas pareceu insatisfeito e insiste em outra finta e… perdeu a bola… E o mundo não caiu sobre ele, a vida seguiu seu curso normal. Aparentemente. Para sua sorte, perder a bola não resultou em gol adversário.
O rei Pelé algumas vezes arriscou o oficio da profecia e mesmo análises políticas. Uma vez disse que “brasileiro não sabia votar” e até hoje caem de pau nele. Esquecem de analisar contextos, essas coisas, mas deixa pra lá. Pior seria se tivesse dito que brasileiro não sabe fazer música ou que todo brasileiro é perna-de-pau no futebol – exceto ele, como tantos fazem, em outros aspectos da vida nacional!
Lembro-me de ter ouvido de Pelé a profecia de que o futuro do futebol estava na África, por eles terem a habilidade e natural desenvoltura. Isso faz anos. Muitos. Estou entre aqueles que torcem para que essa profecia do Rei algum dia venha concretizar a alegria nas arenas com a força impositiva de um Édito Real!