E a Copa Feminina terminou. Escrevo com atraso, o que não combina com o gênero “crônica”, cuja escrita é deve ser instantânea e sua graça decorre justamente disso: a reflexão igualmente instantânea, fruto do aflorar das emoções!
Diz a lenda que Nelson Rodrigues escrevia suas crônicas de modo peculiar: nunca via as partidas que assistia, embora estivesse presente no estádio. Sua inspiração vinha da fervura natural de uma partida de futebol: a reação de quem narrava, as observações dos comentaristas, os informes dos repórteres em campo e especialmente o calor da torcida! Pode ser mera lenda, mas existe espaço para a plausibilidade: Nelson era míope em alto grau e tudo o que conseguia ver eram sombras, mas graças a sua imaginação e arguta capacidade de análise, conseguia traduzir as “sombras” com perfeição, mais e melhor de quem via o jogo com lupa em mãos…
Se essa historieta de Nelson Rodrigues era verdade ou pura lenda, quero dizer que sempre vou preferir a lenda, fazendo jus a outra frase famosa, esta do cineasta John Ford sobre o filme O Homem Que Matou o Facínora: “se a lenda é mais forte que o fato, imponha-se a lenda!”
Em matéria de futebol, sempre vou preferir a lenda em vez da ciência exata. De tempos para cá o mundo do futebol foi tomado pela ciência, onde os analistas se valem à exaustão de estatísticas sendo capazes de revelar em segundos tudo o que determinado jogador ou o time inteiro fez em campo: gols marcados, assistências, passes certos/errados, quantas disputas fez pelo alto/por baixo, quantas ganhou, quantas perdeu; quantos chutes deu com o lado de fora do pé, quantos toques de calcanhar, quantas vezes cuspiu no campo, quantos carrinhos, quantas botinadas deu ou levou, quantas calorias queimou, etecetera e etc. Como o grande negócio que é, pode ter lá sua lógica, pois os investidores milionários querem garantia de que seu investimento está protegido. Ganhou a ciência em detrimento do lúdico, da fantasia. E haja coração: o anticlímax que cerca cada lance duvidoso conferido pelo V.A.R. (Video Assistant Referee).
A Copa das Meninas foi uma festa, onde a disputa, a surpresa deram o ar da graça em cada lance e nem a chatice dos comentaristas munidos de calculadoras e computadores que não deixam ninguém mentir ou se enganar, impediu-nos de apreciar o ballet do campo de jogo! (Uma das virtudes cruciais do jogo de futebol, feminino ou masculino, é sua semelhança com uma dança graciosa, embora gremistas e argentinos ou uruguaios possam, talvez, não concordar…)
Mas tudo estava perfeito demais para ser verdade: a linda vitória das espanholas, que confirmaram que aquela nação, embora são ganhem tudo, tem o estilo de jogo mais vistoso: e pensar que aprenderam conosco, segundo palavras do Guardiola! Quem diria!
Perfeito demais e os santos bem desconfiados! Esmola grande é pra desconfiar. E lá veio o desfecho como nódua maculosa: o tal dirigente da Federação Espanhola de Futebol agarrando de forma constrangedora uma das jogadoras. A palavra e o ato foi mesmo isso: agarrou e beijou na boca. Se foi consentido ou não, se são amigos íntimos, ali, no podium oficial, é lugar de respeito, a atleta é uma divindade para ser admirada e não entanguida à força. Que nome dar a isso? não ouso dar nome. Foi tão fora de propósito que nem interessa consentimento ou não consentimento: a garota não teve opção! O sujeito tinha se tocar que a festa era dela e não dele!
Se Nelson Rodrigues estivesse no campo, provavelmente não veria o agarramento ou a encoxada, pois como sabemos (assim diz a lenda), Nelson não via os detalhes, menos ainda, os constrangedores. Ainda bem.
A cena que correu mundo foi o ocaso final, porém, revelador de que certos tipos de neanderthalis continuam entre nós, embora tenham abolido o uso do tacape para conquistar pessoas do sexo oposto… Ou estaria o tacape escondido sob seu vistoso terno???