Por João Nunes
Meu amigo Joca, que está em São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, para conhecer a família da nova companheira, Mariana, me liga inconformado com a desclassificação do Brasil.
– Nós somos a oitava seleção no ranking da Fifa; a Jamaica é a quadragésima terceira!
– Você viu o que o técnico deles falou antes? Que era David contra Golias e, de novo, quem ganhou foi o David. Ganhar e perder fazem parte do jogo.
Joca entendeu, mas não se convenceu. E ainda deu uma solução. Esdrúxula, é verdade, mas solução, citando o gol perdido pelas meninas de Portugal contra os Estados Unidos. Quer dizer, não foi perdido, bateu na trave.
– Mas o que Portugal e EUA tem a ver com Brasil e Jamaica?
– Se Portugal tivesse marcado, não só se classificaria como desclassificaria as norte-americanas tidas como favoritas ao título. A Fifa tem de mudar as regras das copas, pontificou.
Segundo ele, duas bolas na trave deveria valer uma penalidade máxima e uma a cinco minutos do final do jogo – caso de Portugal – valeria um gol. A proposta era absurda; porém, ainda estava encucado para saber onde entrava Brasil e Jamaica. E ele pediu paciência dizendo que iria explicar.
Antes de começar um jogo, ele disse, os juízes analisariam favores que um país devia ao outro e, o favorecido, entraria em campo ganhando por 1 a 0. A Jamaica deve alguma coisa ao Brasil? Sim. Bob Marley ficou conhecido por aqui porque Gilberto Gil gravou “No Woman no Cry”, um dos maiores sucessos do final dos anos 1980, e ele ganhou muito dinheiro – tanto que a filha dele financiou a ida das jamaicanas para a Copa.
Se a tal desvairada regra valesse, o Brasil teria entrado no jogo com a Jamaica com um gol na frente e, segundo ele, resolveria a injustiça, o grande problema do futebol. É o maior – pelo menos para os comentaristas que vivem dizendo que o resultado foi injusto, que o melhor seria um empate ou vitória do time perdedor.
Ora, respondi, se o parâmetro for justiça, melhor colocar um júri que, ao final da partida, como no boxe, julga quem foi o melhor e lhe dá a vitória. Ele nem me ouviu (ou fingiu que não) e mencionou o episódio de Ronaldo Fenômeno, que passou mal minutos antes da decisão da copa masculina entre Brasil e França, em 1998.
– O Brasil inventou ao mal súbito do jogador a fim de pagar a dívida com a França por ela ter acolhido o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, exilado durante a ditadura militar.
O Joca é meu amigo, mas me desculpe, ele estava misturando tudo. O que tem a ver ditadura com futebol? Quer dizer, tem muito a ver. A copa masculina de 1970 ganha pelo Brasil e da Argentina, em 1978, provam que sim.
Mas, àquelas alturas, não entendendo mais nada, achei que a viagem do Joca a São Miguel do Gostoso não estava fazendo bem a ele. Excesso de sol, cerveja, praia e outros prazeres podem comprometer nosso equilíbrio. Tudo que é demais é demais. Mas ele prosseguiu.
– Portugal roubou nosso ouro e nosso diamante? Em futuro encontro em qualquer Copa entre as duas nações, Brasil entraria em campo somando um gol. Os Estados Unidos têm dólares demais e, África, de menos? Na próxima partida contra os americanos do Norte em copas contra qualquer nação daquele continente o jogo começaria com o placar determinando a vantagem delas sobre os irmãos do norte.
Falou dessas possíveis novas regras e se emocionou, lembrando da chegada a Austrália das meninas da África do Sul e da Zâmbia, cantando e dançando lindas músicas. Era, segundo ele, um canto de alegria e de dor, em especial para a África do Sul, pois o canto evocava o abominável regime do apartheid que, por anos, segregou os negros naquele país.
Mesmo sem entender direito tudo aquilo que meu amigo falava, meditei um pouco sobre isso. Talvez ele estivesse certo. O preconceito contra negros e gays rola solto no nosso continente. E a entidade responsável faz que não vê. Todo jogo entre Brasil e países hermanos (nem tão irmãos assim, pelo jeito) fazem gestos racistas.
Talvez valesse a pena implementar a regra do Joca: punir os times de torcedores racistas, que entrariam em campo perdendo de um a zero. Afinal, tudo o que meu amigo buscava era adequar o sentido de justiça ao futebol. Mas quem disse que futebol é justo? E pensei em complementar com a frase, “sim, igual a tudo na vida”. Mas voltei atrás.
Futebol é um jogo. Bola na trave beira o imponderável, mas acontece e com enorme frequência; ela está lá como um delimitador. E funciona contra o adversário. A vida, ao contrário, é uma constante escolha e nós temos o poder do livre arbítrio. Não é acaso, como a trave.
Foi assim que terminou minha conversa nesta triste manhã em que o time colocado no lugar 43 do ranking da Fifa superou o que está em oitavo. Depois, repensando um pouco, concluí que foi um jogo; contudo, para entrar em campo, tivemos em mãos a capacidade de fazer e mudar muita coisa – aí, sim, fica “igual a tudo na vida”, com apenas um gesto determinado por nós.
O que não fizemos ou não mudamos? O Brasil mal conseguiu assustar as jamaicanas; portanto, não é de justiça que estamos falando. No futebol existe a trave, mas existem gestos que podem fazer da trave apenas um obstáculo a ser vencido com trabalho, competência e talento.
É triste ver o banco inteiro de Portugal com mãos levantadas pronto para comemorar o gol contra os EUA e, milésimos de segundos depois, devastado pelo desencanto – passagem emblemática da esperança para o desespero numa fração de tempo? É.
Também é muito triste ouvir o discurso de despedida da Martha, a grande Martha sabendo que a seleção estava voltando pra casa e a Jamaica seguindo em frente? Sim, é.
Por isso, eu disse que algumas coisas são próprias do jogo, como a referida trave e que, outras, dependem de nós. Não da fraqueza da Jamaica ou da sorte dos Estados Unidos. Pensando assim, não há injustiça no futebol e, muitas vezes, nem na vida.