LGBT o quê?

O Joca me ligou dizendo que a mulher dele, a Sarita, estava viajando e convidou o Matogrosso e eu para assistirmos ao jogo entre Portugal e Uruguai, países simpáticos – um, colonizador nem tão querido assim e, outro, pequena província ao sul com quem mantemos laços afetuosos.
A discussão era: torcer pra quem? Fiquei com o Uruguai sul-americano de gente afável caminhando na 18 de Julho, em Montevidéu, como se o tempo parasse, tamanha calma e tão pouco movimento de carros e gente. O Matogrosso escolheu Portugal – a avó dele era portuguesa e o Joca ficou indeciso. Ora gritava para os lusitanos, ora para os platinos.
Tudo corria nos conformes nessa Copa no país onde tudo parece fake e na qual, nunca, o dinheiro foi tão importante. Dizia que as coisas corriam dentro do planejado quando um rapaz invadiu o campo com a bandeira de cores do arco-íris, símbolo do LGBTQIA+.
– LGBT o quê?
Foi o Matogrosso que resmungou a um canto da sala, cerveja na mão esquerda, cigarro na direita, ao ouvir o narrador do jogo anunciar a invasão. A TV não mostrou e eu até concordo – segundo a Fifa para não estimular e ela tem bons argumentos para não exibir.
Porém, os sheiks (ou sei lá como chamam aqueles machistas homofóbicos, ricos, elegantes, vestidos da cabeça aos pés e donos do Qatar), que fazem muitas restrições às mulheres e odeiam gays, devem ter ficado irados.
No Qatar, como em outros países não democráticos (China, Rússia, Coreia do Norte, Nicarágua, entre outros), eles não estão acostumados com protestos e manifestações. Sei não se esse sujeito não ficará preso por lá, depois de levar cem chibatadas.
Imediatamente, o Joca explicou ao Matogrosso que a sigla quer dizer: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuados e Pansexuais. O Matogrosso resmungou de novo, desta vez, para dizer que não tinha entendido nada, enquanto eu fiquei surpreso pelo fato de o Joca saber o sentido da tal sigla.
Então, ele me contou que há tempos queria alugar a casa construída nos fundos de onde mora, mas tinha medo de arranjar inquilino estranho ou suspeito ou desonesto. Estranho o John era mesmo.
A voz grossa e impositiva e os gestos grandes e másculos não combinavam com as roupas coloridas, o modo despachado, o humor e, quando queria, brincava de ser donzela, gestos delicados, voz macia e olhar doce.
Antes de qualquer coisa, John avisou ao Joca que era gay e que traria amigos seus para casa – eventualmente, poderia rolar uma festa. John era artesão (confeccionava objetos de argila), tinha banda de rock e era ator – além de professor.
– Eu sou completa, brincou com Joca e, sem rodeios, lhe perguntou:
– O senhor tem problemas com gays?
– Em princípio, não.
Respondeu inocentemente e ouviu John gritar: ‘como em princípio’? E vasculhou a cabeça do Joca com perguntas inconvenientes. Se ele tinha coragem de matar gays, se acreditava que para falar que homossexuais seria preciso usar máscara para não pegar a doença e se ele achava que as igrejas pentecostais tinham, mesmo, poder de curar esses depravados?
Joca, meio desnorteado, negou qualquer das possibilidades e garantiu que John poderia morar ali, sem problemas, e realizar eventuais festas. Terminou a conversa convencido a fazer curso de argila com o professor John, apostando na venda dos produtos como modo de lhe dar maior consistência ao salário de aposentado.
Ficou simpatizante dos gays e amigo do John por causa da argila e da banda dele, O Lado Obscuro do Sol, de covers do Judas Priest. “O John é igualzinho ao vocalista Rob Halford. É lindo o cover de ‘Diamonds and Rust’*, da Joan Baez chorando as dores de se apaixonar por Bob Dylan. Fico arrepiado quando ouço. A Sarita chora todas as vezes quando, no final da canção folk com autênticos códigos do heavy metal, John repete quatro vezes o título da música”.
O jogo estava rolando na sala, saiu até o primeiro gol de Portugal e Joca lá matraqueando a falar do John, que era pena que não havia muita gente nos shows da banda, porque, segundo ele, o rock tinha morrido. Chegou a tirar minha concentração quando via o segundo gol dos portugueses:
– O que você acha? O rock morreu? Só tem velhos nos shows do John, todos carecas e cabelo brancos caindo nas costas ou amarrado com esses adereços femininos. Eu acho triste, sabia?
Se os relatos de Joca me surpreenderam, surpresa maior foi ouvir o interesse de Matogrosso pelos cursos do John. Joca lhe contou que havia cursos de argila, de guitarra e até de iluminação para teatro, porque o John ator, também, tinha companhia teatral. E, aí, eu entrei na conversa porque o Matogrosso é exímio eletricista e lhe provoquei:
– Você gosta da sua vida?
Ele não entendeu, disfarçou questionando minha pergunta e contou que sempre viveu só e que nunca teve grandes ambições. ‘Pronto’, lhe disse, você entende tudo de eletricidade, vá ser criativo no teatro como iluminador. Ele ficou me olhando e, de repente, falou:
– Só tem um problema… não sei lidar com esse povo de LGB não sei o quê! E não entendo como um homem pode fazer sexo com outro e uma moça se apaixonar por outra mulher.
E eu lhe expliquei que não tem o que saber, eles são iguais a todo mundo. A diferença é que, em vez de fazer sexo com alguém oposto, eles fazem com alguém igual.
– Você entende disso, é eletricista.
O jogo terminou, fiquei triste pelo Uruguai e decidi ir embora, enquanto o Matogrosso iria esperar o John chegar a fim de conversar com ele sobre o curso de iluminador teatral. Quando lhe dei um abraço (e eu nunca tinha abraçado o Matogrosso), ele me falou:
– Esses homens elegantes, poderosos e ricos se acham melhores que mulheres e gays. Tolos, somos tão iguais, nascemos e morremos e não vamos levar nada deste mundo. Melhores em quê?
Matogrosso tinha entendido porque o rapaz entrou em campo com a bandeira de cores do arco-íris em estádio de um país preconceituoso e encerrou nossa conversa:
– Foi para provocar, não foi? Mas uma coisa me intriga: por que sendo tão elegantes, tão ricos e tão poderosos eles temem tanto as mulheres e os gays?
*O link da música “Diamonds and Rust”

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