A Sandrinha não suportava que eu a chamasse pelo diminutivo (“um desprestígio”), mas, agora que me abandonou por causa da Copa, que importância tem? Depois que Sandrinha partiu, ruídos para os quais nunca dei atenção ganharam vida. Imagino-a voltando quando ouço passos na escada, a cada toque do celular suponho que seja mensagem dela. Noite dessas, a ouvi, da rua, gritar meu nome e acordei assustado de um pesadelo.
Para espantar fantasmas convidei dois amigos para ver, na casa vazia, o jogo de abertura da Copa entre Equador e Qatar. Ver direto do sofá, mas era pra eu estar no Estádio Al Bayt – prêmio de uma rádio campineira no concurso “escreva uma frase sobre o Equador e ganhe dois ingressos para o jogo contra o Qatar”.
Ganhei o concurso e chamei o Heitor, corintiano apaixonado por Michel Jackson, Steve Wonder e The 5ft Dimension, para ser meu acompanhante. Não convidei a Sandrinha porque ela odeia futebol. Mas quando mostrei as passagens e os ingressos, ela ficou irada, parecia pantera negra, pele escura, lisinha, olhos pretos grandes e cabelo desenhando lindo penteado afro que eu não cansava de elogiar. E me desafiou: “Você nem sabe onde fica o Qatar”.
Estava nervoso porque o prêmio era uma cilada, pois só me deram os ingressos. Temendo não saber lidar com a frustração, comprei passagem no cartão de crédito, em doze vezes. Em seguida, cometi novo erro: desdenhar professora de geografia quando não sabemos localizar um lugar. “Qatar fica depois de Marrakesh, pra lá de Teerã”. E ainda sorri por me achar criativo, o fenômeno na criação de frases.
Meu argumento de que ela não gostava de futebol foi minha ruína; a reação dela foi semelhante à chuva de areia que castiga viajantes do deserto de Lute, no Irã. “Homens nunca vão entender. Não gosto de futebol. E daí? Por isso recusaria ir a o Qatar”? E lamentou que sempre quis conhecer Marrocos e Irã e que, a cada ano, eu inventava nova desculpa, mas encontrou jeito de viajar ao Qatar para assistir a bando de homens correndo atrás da bola”.
Foi só o começo. Seguiu-se o tipo de discussão na qual revelamos o que temos de pior. “Você sempre achou que engenharia civil era mais importante que geografia, pois saiba que me orgulho do doutorado feito em Cambridge. E você nunca construiu nada relevante”.
Essa ela pegou pesado. Como não? Assinei a engenharia do consulado equatoriano em Campinas e, por meu trabalho, fui condecorado em Quito. Ela espezinhou: “A ideia foi minha, esqueceu”?
Como quem perde o rumo, tentei consertar. “Sempre respeitei sua profissão. E você tem razão, não sei onde fica Qatar”. E, como se ela estivesse na sala de aula, ensinou que Marrakesh ficava no Marrocos, norte da África; Teerã, no Irã, Ásia Ocidental, enquanto o Qatar pertence a Ásia Continental.
Ofendido por parecer menino acuado ante a professora, esculhambei de vez. “Então, tudo a mesma coisa”. E emendei dizendo que iria assistir ao jogo do país dela – eu a conheci quando morei Quito por dois anos, nos casamos, ela virou meio brasileira e eu meio equatoriano. “E estou indo torcer por seu país, tentei seduzi-la”. Quando se tornou irredutível eu ensaiei uma graça: “Contra o Qatar, sou equatoriano desde criancinha”.
Apaixonei-me pela Quito estendida sobre vale e cercada de picos nevados e vulcões vivos, tomada pelo frio que atravessa o ano e habitado pelos quéchuas, indígenas cerimoniosos conhecidos pela quietude e educação. E foi ela quem me levou pela primeira vez ao antigo estádio Atahualpa, onde, durante dois anos, acompanhei o campeonato do país – o Equador nem sonhava participar da Copa e se dava por satisfeito torcer para o Brasil.
Estávamos em crise havia algum tempo e meu último argumento da longa lista foi dizer-lhe que, pela primeira vez, eu tinha a chance real de ver um jogo de Copa do Mundo e, quando voltasse, iríamos planejar a viagem para Marrocos e Irã. Nada a convenceu.
Na última noite da condição de casal, ela se trancou no quarto a fim de arrumar malas e eu me sentei para ouvir Gil cantar na vitrola da sala: “Amarradão na torre, dá pra ir pro mundo inteiro/ E onde quer que eu vá no mundo/ vejo minha torre/ É só balançar que a corda me leva de volta pra ela, oh Sandra”.
Viajava pelo mundo, em meio à penumbra, quando vi o vulto da Sandrinha, próxima da vitrola. Olhou-me de modo teatral e rasgou bem devagar a capa do Gil, e com uma pedra, dessas de decoração, moeu o disco. Então, me mostrou a passagem e os dois ingressos e, com um palito de fósforo, desses grandes, queimou-os.
Segundos depois, ouvi a voz da irmã dela ressoando pelo quarto. “Só essas duas malas”? E escutei o baque surdo da porta do apartamento se fechando e ouvi o som dos sapatos dela descendo escadas (ela não gosta de elevador) e o som do carro da irmã arrancando histérico no meio da noite. Pensei que estivesse chovendo. Devia, mas não estava. Tinha, sim, uma lua minguante se escondendo entre as nuvens.
Ontem, Heitor me ligou confirmando que veremos em casa o jogo de abertura da Copa. “Vou mais cedo; quero mostrar o disco do Michael Jackson que completa minha coleção de vinis”. E me deu uma informação que me deixou pasmo: “a Sandrinha vai assistir ao jogo no consulado”. Impossível, ela odeia futebol, pensei e falei. “Se odeia ou não, o fato é que vai. Com direito a festinha, caso o Equador vença”.
Eu construí aquele prédio, ele tem meu DNA, meu nome está lá; eles podiam ter me chamado – o Heitor ouvindo meus lamentos até se encher. “Me convida pra ver o jogo na sua casa, mas quer ir no consulado”. Eu assimilava o golpe quando ele me mandou um jab de esquerda. “Ah, mesmo que quisesse ir, seria impossível porque a festa é só para equatorianos. E você é meio equatoriano”.
Domingo, eu estaria no estádio Al Bayt, ao vivo, mas vou assistir à abertura direto do sofá. O Heitor vai trazer a bandeira do Equador e eu vou vestir a camisa do Gonzalo Plata, o craque do time. Ah, e o Maurício também vem, informei ao Heitor. “Maurício é o branquinho torcedor da Ponte Preta que trabalha no Museu do Índio”? Sim, é ele. E trará o cartaz “Arriba Equador”, que vou dependurar na janela junto com a bandeira.
Quem sabe a Sandrinha passa por lá a caminho do consulado, se sensibilize e, depois da festa, volte pra casa.
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João Nunes
João Nunes é formado em teologia e jornalismo, autor do livro “Paulínia – Uma História de Cinema” (Paco Editorial, 2019) e integrante e um dos fundadores da Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine. Atualmente assina a coluna Sala de Cinema no site Hora Campinas (horacampinas.com.br)
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