A mãe, escandalosa como sempre, berrava, enquanto eu sumia pela praia em busca das águas quentes da Enseada. Por puro masoquismo, ela assistiu ao filme do Spielberg, na noite anterior à nossa viagem para o Guarujá e temia que eu fosse tragado por um tubarão.
Eu, chamado de meia-lua na escola, por ser branquelo e fora do peso, ouvia os gritos dela me imaginando que, ao menos, eu serviria de farto banquete entre os dentes de um tubarão, agradecendo às pessoas por terem me permitido viver (mesmo por tão pouco tempo) neste mundo de magrelos.
Eu, Davi, ser de outro planeta, devorador de toneladas de hambúrgueres, cachorros-quentes e refrigerantes em busca do meu sossego e acostumado à solidão do quarto, vendo TV cercado de panela de pipocas, bolos e tortas.
Minha mãe era incapaz de entender que mergulhar nas águas azuis do mar servia de refúgio para meu corpo imenso e escondia os fantasmas do início da adolescência. Nos meus doze anos, que pareciam inúteis, observava assustado o corpo criar pelos, os dentes saltarem da boca, os olhos se esbugalharem e o cabelo ficar indócil.
Recriminava a mãe, me escondia nas águas e ouvia o eco da voz dela me chamando; mas, desta vez, ela tinha bom motivo. Dias antes de viajar, ela leu numa revista que Pelé tinha casa, justamente, na praia da Enseada, onde iríamos nos hospedar.
Ela sabia do meu sonho em conhecer Pelé – nem pensava em ser jogador de futebol, pois não possuía habilidade alguma. E nem precisava conversar com ele nem posar para fotos. Bastava vê-lo e receber um olhar bondoso de rei, que só reis bondosos sabem oferecer.
Durante a viagem de ônibus de Campinas ao Guarujá passei boa parte do tempo rezando para que Deus me desse de presente de ano-novo um encontro com Pelé. Eis a razão de a mãe gritar feito louca meu nome, a palavra Davi misturada com o barulho do mar, os anúncios de camelôs vendendo de tudo, rapazes jogando bola, meninas brincando de vôlei e um céu lindo, azul, e sol forte tentando escurecer minha pele branquela.
Enquanto me escondia no mar, ela ouviu um vendedor de espetinhos dizer que o Pelé estava no hotel cinco estrelas, bem frente do lugar na praia onde instalamos nosso guarda-sol. Ele viera dar o pontapé inicial de um jogo de futebol de praia de meninos carentes da periferia da cidade.
Não dei bola para o chamado da mãe, mas algo em mim chamou a atenção. Deve ter sido intuição, essa coisa que, dizem, não existe, mas existe. Foi por isso que deixei o mar para trás e corri procurar nosso guarda-sol.
Quando a mãe me viu, saltou esbaforida da cadeira, misturando palavras atropeladas com a tentativa de engolir pedaço de queijo quente. “O Pelé está no hotel”, eu ouvi sem acreditar. “Que hotel”? Esse em frente, ela indicou.
Não me lembro bem da minha reação. Acho que tive leve desmaio, pois vi o mar de dar giro de 360 graus sobre minha cabeça. E, sem pensar muito, atordoado, peguei a camiseta e iniciei a curta, mas difícil, corrida na direção do hotel.
O corpo estava mais pesado que nunca, mas a ansiedade me impulsionava e, eu tinha de corresponder à resposta de Deus porque, afinal, Ele ouviu minhas preces e, naquele momento, poderia acontecer o que fosse – raio, maremoto, aparecimento de tubarão – nada desviaria meu foco.
Ver Pelé, o garoto pobre que virou rei, transformaria meu cotidiano solitário, removeria as angústias, me animaria a buscar rumo na vida, porque ele era exemplo, referência, ídolo. Depois desse dia, um novo Davi passaria a existir.
Na porta do hotel, ouvi o porteiro dizer-me com desprezo que Pelé tinha acabado de sair. Quis saber para onde, mas ele me olhou com indiferença e nem respondeu. Foi por pouco. Talvez porque não consegui correr mais rápido, ou porque não era pra ser. Talvez, Deus estivesse bravo comigo por alguma razão – o que explicaria o porquê de não ter respondido as orações. E me culpei, imaginado que tudo seria diferente se eu tivesse atendido o chamado da mãe.
Naquela noite, dormi mal. Um tubarão quatro vezes maior do que o do filme estraçalhava meu corpo. Em vão chamava a mãe roncando no quarto ao lado – meu sangue se misturava ao dele e o corpo se despedaçava cruelmente incapaz de deter as mandíbulas do monstro marinho. Amanheci triste e triste fui para a praia, no mesmo lugar, em frente ao hotel.
E, de repente, vi uma correria de fotógrafos. Venci a areia, onde meus pés atolavam, cruzei a avenida cheia de carros e, lá estava eu, de novo, em frente ao hotel e do mesmo porteiro do dia anterior. Pelé dava entrevista coletiva, mas o porteiro me disse que eu não poderia entrar.
De nada adiantaram meus muitos argumentos, minhas súplicas, minha cara de decepcionado, meus olhos de quase choro. “Vaza, gordinho”, finalmente ele disse. Sai cabisbaixo, maldizendo a vida, imprecando contra a crueldade do mundo.
Então, olhei o céu do meio-dia naquele azul magnífico da Enseada. Aquilo era luz – dessas que alumiam caminhos tortuosos, clareiam noites tenebrosas, indicam trilhas seguras em florestas perigosas. E me lembrei da mãe dizer que as sombras existem, mas que nós somos da luz; por isso, quando a luz incide sobre nós, as sombras se dispersam.
E percebi que a luz daquele sol quente, brilhante e poderoso incidia sobre mim, que eu deveria acreditar na intuição e fazer o que fosse possível para ver Pelé e que aquela era a única chance real de isso acontecer.
Circundei o hotel e descobri uma entrada de serviço onde se lia: “não entre”. Sempre fui obediente às leis, era honesto e justo, como ensinou a mãe, mas aquela placa eu iria desobedecer. Olhei de um lado e de outro, não havia ninguém, e eu entrei. A porta dava no saguão do hotel, onde Pelé, cercado de um monte de jornalistas, concedia a entrevista.
Baixinho, fui me esgueirando entre as pernas de adultos, como se entrasse numa floresta e era preciso abrir clareiras e criar trilhas para chegar ao ponto determinado. E, enquanto, me apertava entre as pernas, vi duas mãos coladas às pernas. “São dele”, pensei.
Emocionado, toquei uma delas e logo me enganchei nela como se fosse a do meu pai, que nem conheci, me ajudando atravessar a rua. E o dono da mão, à qual me enganchara, percebeu e se acomodou à minha. E, logo, juntou a outra mão, como se a acolhesse, como se me acolhesse.
Como você sabe que eram as mãos dele, perguntou a mãe. Eram as únicas mãos negras do meio de um emaranhado de mãos. Só podia ser dele. E, além disso, senti, por intuição, que eram dele e não precisava mais de prova alguma.
Saí do hotel com um elevado sentimento de esperança que nunca tivera antes, feito devoto quando toca o santo de devoção. Senti a quentura das mãos dele invadindo-me a pele, senti a energia dele penetrar meu corpo e experimentei bons sentimentos cercando-me a alma. Meu olhar sobre a vida haveria de mudar.
Nunca me senti tão confiante. E não precisava ser jogador de futebol nem pessoa famosa nem dono de muitas terras ou de dinheiro. Precisava ser íntegro, honesto, justo e olhar a vida de frente, encará-la com bravura e coragem. Era tudo o que eu precisava, era tudo o que as mãos de Pelé me entregaram naquele dia como presente de ano-novo.
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João Nunes
João Nunes é formado em teologia e jornalismo, autor do livro “Paulínia – Uma História de Cinema” (Paco Editorial, 2019) e integrante e um dos fundadores da Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine. Atualmente assina a coluna Sala de Cinema no site Hora Campinas (horacampinas.com.br)
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