O pessoal do Jura Que Sabe gosta de ver os jogos do Brasil no boteco do Novelo. Contra a Sérvia foi na quarta, à tarde. Dolores foi, e levou o namorado. Dolores não se interessa por futebol, mas parece que se interessa. Ela não entende de futebol, mas parece que entende. Dolores não tem varinha de condão, mas parece que tem. Ela não é mais inteligente que todo mundo, mas parece que é. Na praia, Dolores não usa fio dental, mas é a mais sensual. O pessoal, entre uma brama e outra, discute, discute e, de repente, ela entra e todo mundo se cala. Ela fala e todo mundo concorda. Ela tem um namorado, um cara sarado, forte como um touro. E tem um apaixonado, André, o antropólogo que anda com o pessoal do Jura Que Sabe desde que chegou no morro perguntando por Guimba, o craque e dono do time. André foi lá com interesses antropológicos, fazia mestrado há oito anos, atrás do Jurakissabi, talvez de remanescentes indígenas. Quando soube que era um time de futebol, não quis perder viagem e ficou por ali, podia mudar o tema do mestrado, estava cansado da temática indígena. O pessoal gostou dele, ele gostou do pessoal e virou torcedor fanático e colaborador do Jura Que Sabe. Não perde um jogo. Na quarta chegou cedo e pegou lugar na frente, grudado na TV, e guardou lugar para Dolores. Quando ela chegou, ele perdeu o lugar para o namorado sarado. Ficou na fileira de trás, mas não atrás dela, na diagonal à esquerda dela, e podia ver o rosto e as reações de sua musa.
O jogo começou, todo mundo nervoso, tenso. André, um olho na bola, outro na musa. Dolores, de legging amarela e camiseta verdade, uma graça, de vez em quando soprava uma vuvuzela. O namorado sarado vigiava. Dona Zélia trouxe a vela acesa, Novelo servia bramas, Guimba acendia um cigarro no outro.
O jogo começou, cautela dos dois lados, o Brasil tocava melhor, os sérvios gigantes na estatura física; na bola, nem tanto. Brasil melhor, Neymar cai pouco, joga bem, poucos arremates. Aos 36 minutos do primeiro tempo, de repente, Dolores sopra a vuvuzela e grita, “É agora Brasil”, o Brasil vai, Philippe Coutinho faz um lançamento genial, pega Paulinho em velocidade na direção do gol sérvio, o volante deixa a bola passar e, na saída do goleiro, dá um toquinho sutil, o suficiente para botar a bola na rede. Explosão de tudo, gritos, abraços, choros, gente se ajoelhando, gente gemendo, gente se beijando, uma zona. Aos poucos o povo volta à calma, menos dois. No meio da bagunça André e Dolores continuam abraçados, paralisados, o antropólogo ouve o coraçãozinho dela que bate tranquilinho, contra o dele, que bate enlouquecidamente. Todos olham aquilo e ninguém diz nada. O namorado também olha, exibe os bíceps e fuzila André com seu olhar. O antropólogo, assustado, deixa devagarzinho o abraço, se afasta e a musa devolve o olhar fuzilante para o namorado, que recua, mas senta do lado esquerdo e ela tem que sentar, agora, do lado direito, tirando a visão de André.
Nada importante acontece nos próximos minutos e o juiz encerra o primeiro tempo. André vai até Guimba e mostra o bilhetinho que quer passar para Dolores: “Vai comigo no cinema, sexta, seção das 18 horas? Às cinco no shopping da Ponta da Praia”.
– Você tá louco André? O cara te arrebenta.
– Se você me ajudar não Guimba. Chama ele para tomar uma brama. Pega mal ele recusar. Se ele se distrair dez segundos eu passo o bilhete para a mãozinha dela.
Dois minutos depois, Guimba, com toda a sua autoridade, chega no casal e convida o sarado para uma brama. Ela olha para o moço e diz, com o olhar, que ele tem que aceitar. Ele vai mas fica vigiando. Só que, na hora do “saúde”, André passa rapidamente por Dolores e deixa o bilhetinho na mão dela.
O jogo continua, a Sérvia vai pra cima, a defesa do Brasil é sólida, Thiago Silva é monstro, nada parecido com a Copa no Brasil. Aos 22 minutos Dolores sopra de novo a vuvuzela e grita, “É agora Brasil”, e, por algum motivo, todo mundo achou que sairia mais um gol. Bola alçada na área, Thiago sobre mais que os gigantes sérvios e mete pra dentro. Outra explosão, mas desta vez, quem abraça Dolores é o namorado. E, até o fim do jogo, sem qualquer sombra de dúvida, a responsável pela vitória brasileira passou a ser Dolores, a musa de André e, agora, do Jura Que Sabe.
O jogo termina, todo mundo se abraça, marca encontro para o próximo embate, que será contra o México, Dolores sai abraçadinha com o namorado e só ficam André, Guimba e Novelo, o primeiro com cara tristinha.
– Que pena André, eu bem que tentei ajudar.
– Sem problema Guimba, vai dar tudo certo.
E, na hora da despedida, o antropólogo abre a mão e mostra para o amigo um papelzinho branco dobrado. Guimba leu: “Vou!”.
Compartilhar:
João Batista Freire
Nascido às 13 horas, dia de São João, em Santos. Escola primária no Morro do São Bento, jogador de bola em campinho de terra e pedras, torcedor sofredor do São Paulo. De tanto minha mãe insistir fiz faculdade de Ed. Física, Mestrado e até Doutorado. Gosto mesmo é de escrever, mas como é preciso assunto para escrever enfiei de tudo, de futebol a motricidade humana, de pular corda a pedagogia do movimento. E assim, tenteando e enganando a dita cuja, vou vivendo e já cheguei nos 70.
Todas as crônicas do autor
Curta nossa página no Facebook e acompanhe as crônicas mais recentes.
Crônicas Recentes.
Joca
22/08/2023
Caio Junqueira Maciel
21/08/2023
Maria Alice Zocchio
20/08/2023
Fátima Gilioli
20/08/2023
Marcelo da Silva Antunes
20/08/2023
Marcelo da Silva Antunes
18/08/2023
Marcelo da Silva Antunes
15/08/2023