O beijo

O que vocês vão ler agora é uma crônica postada neste site, Crônicas da Copa, mas não trata sobre futebol, não fala sobre a copa feminina de futebol que acabou há pouco. Também não é apenas uma crônica. É além disso um ato de desabafo, não de acusação, mas de apoio, de empatia, uma identificação entre fatos recentes.
Trata-se de um beijo. Um ato na maioria das vezes tão prazeroso, uma demonstração de carinho, de afeição, de intimidade. Mas acima de tudo, um ato simbólico, que nem sempre tem sabor adocicado. Pensando nisso, relembro o beijo de Judas em Jesus, para entregá-lo aos guardas que o levariam para os últimos momentos antes de sua crucificação.
Possivelmente todos já tenham em mente a que beijo me refiro. Sim, primeiramente quero falar sobre o beijo à força que o presidente da Federação Espanhola de Futebol deu na atacante Jenni Hermoso, durante a cerimônia de premiação do título que a seleção feminina conquistou na Copa da Austrália.
Já vinha acompanhando o caso com indignação e hoje a ficha caiu, exatamente quando a Fifa decide suspender provisoriamente o dirigente, que em sua defesa alega consentimento por parte da atleta. Jenni nega que tenha consentido. Aparentemente, a decisão da entidade teria acontecido tanto pela repercussão negativa na mídia, quanto por pressão de um grupo de jogadoras que publicou um comunicado em apoio à colega, exigindo a saída de Luis Rubiales da presidência da federação e afirmando que, caso contrário, nenhuma das 80 jogadoras atenderá a convocações da seleção espanhola.
A razão pela qual resolvi escrever sobre isso foi que eu me dei conta de que vivi uma experiência semelhante à da atleta, poucos dias antes dela. O estranho é que só hoje eu me dei conta disso. O processo que a mulher vivencia em casos de abusos é tão doloroso que um mecanismo de autodefesa tenta afastar de sua mente a ocorrência, fazendo com que ela própria minimize o fato, talvez comparando-o com outros de grau muito mais grave.
Tentarei contar exatamente como aconteceu, sem identificar o indivíduo, pois, como escrevi no início, não pretendo, por razões pessoais, transformá-la em documento oficial de denúncia.
Por motivos profissionais, acabei, contrariando minha vontade, aceitando um convite para tomar um café em companhia de um escritor para o qual fiz uma revisão de texto. A razão alegada por ele foi de que gostaria de discutir alguns apontamentos meus, para os quais ele tinha argumentos e explicações. Como a situação fugia de qualquer hábito relacionado ao trabalho de revisão, minhas primeiras tentativas foram de demovê-lo da intenção, justificando que tudo poderia ser discutido de maneira virtual, por e-mail, teleconferência ou mesmo por telefone.
Encurralada pela sua insistência e querendo considerar o trabalho terminado, decidi aceitar o convite, mesmo sentindo um certo perigo no ar, pressentindo um risco de vir a ser tratada de forma inconveniente ou algo parecido. Antes, porém, relatei minha insatisfação com o compromisso a um amigo, que imediatamente se dispôs a me acompanhar, embora considerasse o risco baixo, em função de rumores que se ouvia em relação às predileções de meu anfitrião. Recusei sua oferta por entender que, sendo em local público, o maior risco seria que eu me enfadasse e julguei que levar um homem para me “proteger” seria atestado de fraqueza. “Não é necessário” eu disse, “eu o colocarei em seu lugar”.
Fui determinada a resolver logo o imbróglio e preparada para ligar o gravador do celular ou até mesmo a câmera, se fosse necessário registrar algo. Felizmente, durante o tempo em que permanecemos no local, nenhuma atitude inconveniente aconteceu, tirando-se o fato de o dito cujo não saber ouvir, apenas falar o tempo todo de suas glórias e conquistas e impor sua opinião sobre qualquer fato do qual se discuta.
Ao nos despedirmos, em frente ao café, aconteceu um abraço e dois beijos no rosto, um de cada lado, como havia ocorrido na minha chegada, atitude que aceitei como normal. Porém, antes que nos afastássemos, o indivíduo me deu um terceiro beijo, no pescoço, me pegando totalmente de surpresa e me deixando totalmente sem ação, já que logo cada um seguiu para distâncias opostas, devido aos locais onde cada um havia estacionado. Caminhei para o carro incrédula, tentando entender se o ato tinha sido proposital ou acidental. Cheguei à conclusão que tinha sido, sim, um ato abusivo e a lembrança daquela ocorrência ficou me perseguindo por horas e depois me impedindo de pegar no sono naquela noite.
Instalado aquele mecanismo de autodefesa ao qual me referi, fui aos poucos minimizando a atitude e suas consequências, somente pensando em como poderia fazer para limitar dali por diante a forma de cumprimentos entre mim e ele, quando ocorresse um novo encontro, que futuramente haveria de acontecer.
Comecei a pensar, então, em como uma mulher consegue evitar um beijo no momento em que está cumprimentando um homem. Beijos no rosto se tornaram comuns em nossa cultura. Alguns são tímidos, outros mais festejados. Como recusar um beijo de cumprimento? Estender a mão firmemente para que fique claro que o outro deve parar por ali? Já tentei isso algumas vezes e não funcionou muito bem. Para não passar de deseducada, acabei recebendo o beijo, sempre no rosto é claro. Não na boca, nem no pescoço. Quem me beija assim só pode ser meu namorado. Mesmo assim, com o meu consentimento.
Não é todo mundo que queremos beijar no momento de cumprimentar. Seja homem ou mulher, sempre achei que deveria ser um ato espontâneo, mas recíproco. Pensando em outra tática, me veio à cabeça uma bem engraçada, levantar uma plaquinha bem na frente do rosto, em que estaria escrito “permito apenas aperto de mão”. Declarar as mesmas palavras em voz alta, no momento em que se depara com o ser, soaria estranho para quem estivesse por perto e logo necessitaria de uma explicação.
Sem achar a saída adequada, acabei deixando para decidir o que fazer no momento do encontro e os acontecimentos diários acabaram me distanciando do trauma. Deixei tanto de lado, que ao ser perguntada pelo meu amigo sobre o resultado do incômodo café, respondi que tudo tinha transcorrido bem, na medida do possível, mas que eu jamais aceitaria novamente aquele tipo de convite.
Foi me solidarizando com a atleta beijada na boca à força que me veio à tona aquele sentimento de repugnância em relação ao beijo forçado no pescoço que recebi. É claro que minha posição é bem diferente da dela. Não tenho como provar que aconteceu da forma que estou contando. Não foi na frente do mundo. Mesmo que haja câmeras que possam ser revisadas do local em que estávamos, duvido que a intenção ficaria explícita. Seria a minha palavra contra a dele apenas. Mas por favor, mulheres, não encarem isso como razão para não denunciarem um abuso. Sendo necessário, sigam em frente. A palavra de uma mulher tem muito valor. No meu caso, estou julgando desnecessário.
Também é preciso analisar o contexto. No caso da jogadora espanhola, além de ter sido transmitido ao vivo para todo o planeta, ter sido gravado e o vídeo ilustrado várias matérias em inúmeras mídias, há toda a situação estranha que o time feminino espanhol vem enfrentando nos últimos tempos em relação à equipe técnica da seleção. Há um evidente desacordo entre as partes, escancarado publicamente em notícias e ações e foi até comentado por mim em minha crônica anterior, escrita ainda no domingo do final da copa. Foi uma vitória incrível, dadas as circunstâncias emocionais enfrentadas pelas jogadoras, contra todas as expectativas naturais em casos com crises de relacionamento desse tipo.
O que esse contexto tem a ver com a atitude do dirigente? Deixo essa pergunta no ar por não saber como respondê-la. Mas é certo que precisa ser levado em consideração na investigação em curso.
Quanto a mim, ter escrito esta crônica me trouxe a solução que eu procurava. Espero que o meu opressor a leia com atenção e se identifique na cena, sem, de forma alguma comentar com alguém, o que o estaria identificando, que como eu já disse, não é minha intenção. Que fique entre nós, mas que sirva de alerta. Cumprimentos entre nós, apenas com um breve aperto de mão. Combinado?

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