Quando todo mundo, de estatura tão maior que a minha, já disse tudo que havia a dizer sobre Pelé ainda em vida, de que adianta falar dele neste dia triste, de luto e saudade? Lembro Drummond: difícil não é fazer mil gols, como Pelé. Difícil é fazer um gol como Pelé. Lembro o filme com o resumo de sua história: eterno. Lembro as dezenas de países visitados e encantados por seu poder de brincar o jogo, de fazer de tudo arte. O homem que interrompeu guerras pra que todos pudessem, irmanados, testemunhar o seu gênio. O homem que muitos consideraram ingênuo por dedicar o milésimo gol às criancinhas do Brasil, por gritar “love, love, love” para os norte-americanos entenderem do que se trata.
Tudo isso e muito mais já foi dito e mostrado. O que não foi dito: que estávamos no Mineirão quando o Galo venceu o Santos por 2×1 no Brasileiro de 1971, sem gol de Pelé, mas com passe dele pro Mazinho, e com os nossos dois convertidos por Dario Peito de Aço. Que estávamos no Mineirão quando o Galo (vestido de Seleção Mineira) venceu a Seleção Brasileira, com Pelé e tudo, também por 2×1, o que só prova que o atleticano é mais apaixonado pelo próprio time do que pelo Brasil. Mas disso todo mundo também já sabia.
Teve outro episódio em que meus irmãos, torcedores do América, foram pra porta do vestiário do Santos, no Mineirão, após uma partida entre o time mineiro e o paulista, pra esperar e tentar um contato com Pelé. Meu irmão conta que era tão pequeno que só conseguiu se agarrar à perna do gênio e receber dele um afago na cabeça, até escorrer e perder a carona. Esse episódio eu reinterpretei e incluí no meu romance Segunda Divisão, sobre os sonhos dos atletas “pequenos”.
(A foto é de um encontro entre Pelé e Jair Bala, um dos maiores ídolos do América mineiro, que morreu esta semana aos 79 anos. Antes, porém, jogaram juntos no Santos.)
Uma cena que eu vi: Pelé no programa A Família Trapo. Era uma sitcom dominical que reunia alguns dos maiores comediantes do país – Ronald Golias, Jô Soares, Otelo Zeloni, Cidinha Campos, Ricardo Corte Real. Uma família italianada de São Paulo, cheia de rolos, tinha no cunhado, Bronco Dinossauro Trapo (Golias), o trapaceiro-mor. Nesse dia Pelé visitou a casa dos Trapo e, sem ser reconhecido pelos trapalhões, teve que ouvir uma aula do Bronco sobre como cobrar pênalti. E o goleiro era o Jô!
Hoje devem estar rindo no céu dos artistas todos esses que eu citei. Festejando a chegada do maior artista da bola que já pisou o planeta. Que amou a bola com entrega total; que, com o dom inato e o esforço de se aprimorar, construiu algo próximo da perfeição. Que, querendo ou sem querer, elevou a autoestima das pessoas pretas, que viram reis e rainhas se curvarem àquele semideus. Um homem que se elevou acima das polêmicas porque possuía algo inquestionável: força, inteligência, coragem, alegria, carisma. Tinha seus defeitos? Claro. Errou ao lidar com a questão da filha Sandra Regina, que só reconheceu à força? Pra mim, sim, errou. Era humano, apesar das evidências em contrário.
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Clara Arreguy
Clara Arreguy é jornalista e escritora. Mineira de Belo Horizonte, mora em Brasília desde 2004. Trabalhou nos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense, na revista Veja Brasília, em assessorias de imprensa de empresas e governos. Tem 29 livros publicados. Três deles falam sobre esportes: o romance "Segunda divisão" (Lamparina, 2005), o volume de contos "Sonhos olímpicos" (Franco, 2014) e o de crônicas "Futebola - crônicas sobre as copas de 2018 e 2019" (Outubro Edições, 2020), em parceria com Fernanda de Aragão. Um, sobre jornalismo: "Bola Dentro, um furo de reportagem" (Outubro, 2018). Mantém um blog de crônicas e resenhas no site de sua editora: www.outubroedicoes.com.br. E apresenta resenhas literárias no canal da Outubro Edições no Youtube. (Foto: Eugênia Alvarez)
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