Por conta do meu destino, um tango argentino me cai bem melhor que um blues, cantava Belchior no século passado. Também sou assim. É um sangue quente, é uma garra, é uma faca nos dentes e um brilho nos olhos. Guerra das Malvinas: derrota. Aquelas Falklands lá, como uma cicatriz a lembrar da humilhação. Ditadura sanguinária. Evita e Perón. Mercedes Sosa, deusa. Maradona, vida e morte trágicas. E o tango, e o frio, e o vinho. E o Messi, com sua síndrome de Asperger, um gigante que nunca deu uma Copa ao seu país. E aquele complexo de europeus. E a Recoleta, o Caminito, San Telmo… E o Brasil logo ali colado, fazendo rivalidade e parceria, amor e ódio, rencores y passiones…
Essa derrota da Argentina pra Arábia Saudita na estreia do Mundial, justamente quando eles estavam a um jogo de igualar o recorde de partidas invictas de uma seleção, ah, tem som de tango, odor de vinho e sabor de sangre. Tudo dramático. O pênalti que o VAR viu e os comentaristas de arbitragem, não. Os gols anulados, aquele monte de impedimento, a falta de calma pra pôr a bola no chão e recomeçar como se estivesse 0x0. Não, acomodaram-se com a vantagem no placar e preferiram não jogar os últimos cinco minutos do primeiro tempo e guardar pro segundo a consolidação da vitória.
Só que o que era deles estava guardado, e não por eles, mas pelos adversários sauditas. Que devem ter ouvido em algum lugar que hoje em diante não tem mais bobo no futebol. Que é 11 contra 11 e só termina quando o juiz apita. E em oito minutos viraram a canoa (foto). A dramaticidade só crescia, enquanto a bagunça que a Argentina virou só aumentava. Estava mais fácil levar o terceiro do que arrancar um empate (!) contra os adversários, outrora francos favoritos para uma goleada.
É, futebol, por essas e por outras não tem esporte mais emocionante que este. E ninguém mais passional que os nossos vizinhos do sul. E tome vaia! Agora, vem guerra pela frente. Nada a que eles não estejam acostumados. Mas que foi de fabricar milionários nas bolsas de apostas, lá isso foi. Só não digo que faltaram o Nacho Fernandez e o Germán Cano porque vão me chamar de parcial.
Em tempo: o que deu nos locutores e comentaristas pra chamar os sauditas de “os árabes”. Eles não sabem que tem uma porção de seleções árabes no Mundial? Que a Arábia Saudita é apenas uma delas? Que chamá-los de sauditas informaria e esclareceria melhor o espectador? Coisas da Globo, como os “deles” e os “delas” e o “e também”. Jogo que segue.
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Clara Arreguy
Clara Arreguy é jornalista e escritora. Mineira de Belo Horizonte, mora em Brasília desde 2004. Trabalhou nos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense, na revista Veja Brasília, em assessorias de imprensa de empresas e governos. Tem 29 livros publicados. Três deles falam sobre esportes: o romance "Segunda divisão" (Lamparina, 2005), o volume de contos "Sonhos olímpicos" (Franco, 2014) e o de crônicas "Futebola - crônicas sobre as copas de 2018 e 2019" (Outubro Edições, 2020), em parceria com Fernanda de Aragão. Um, sobre jornalismo: "Bola Dentro, um furo de reportagem" (Outubro, 2018). Mantém um blog de crônicas e resenhas no site de sua editora: www.outubroedicoes.com.br. E apresenta resenhas literárias no canal da Outubro Edições no Youtube. (Foto: Eugênia Alvarez)
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