FUTEBOL, SUBSTANTIVO FEMININO

Para as brasileiras que jogam futebol

Foi no Natal. Eu tinha quatro anos e o mano, sete. Como sempre, o pai distribuía os presentes e abriu nossos embrulhos: uma bola e uma boneca. Estava na cara o que era de quem, mas assim que o mano botou seu presente no chão, eu me adiantei, tomei a bola e fiz meia volta pra passar por ele. Furioso, o mano saiu chutando o que podia, cadeira, mesa, minha perna. Até que acertou a bola e ela voou no vaso azul que ficava na mesinha de centro. Foi uma explosão de cacos e do pai, cobrindo a gente de socos. Quando o mano abriu o berreiro, me acusando de ter roubado seu presente, o pai orientou: pois roube o dela também. Os dois juntos voaram na boneca, que jogaram no chão e pisotearam. E eu ali, parada, só olhando a bola.

(17 de maio de 1940, Pacaembu: primeira partida de futebol feminino disputada no Brasil. S.C. Brasileiro 2 x 0 Realengo. Gols de Zizinha e Sarah. 14 de abril de 1941: decreto-lei 3.199, de Getúlio Vargas, artigo 54: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”.)

Daí em diante, apesar da minha natureza, eu só queria saber de jogar bola. O mano e meu pai que ficassem com as bonecas, para pisotear ou brincar. Os meninos da rua e da escola zombavam de mim, me vaiavam. Só não me batiam porque o mano não deixava. Ao contrário do pai, ele se acalmou. E as meninas não falavam comigo: machona. Eu ficava na rua, jogando bola com o mano, mas ele nunca me vencia e enchia o saco daquilo. Até o dia em que o time da rua perdia de dois a zero e não tinha mais quem botar em campo pra tentar virar o jogo. Foi aí que eu entrei e, em dez minutos, fiz dois gols e sofri um pênalti, que o capitão bateu e o time da rua ganhou. Dali em diante, não era mais o time deles. Era o nosso time.

(Brasil, 1979: revogada a proibição para mulheres jogarem futebol. 1983: surgem os primeiros times profissionais de futebol feminino do país: Radar, no Rio de Janeiro e Saad, em São Paulo.)

O mano e a Liz comandavam a torcida. A Liz era irmã da Wenisday, que agora também jogava no nosso time. E como jogava. Em três anos fomos campeões – e campeãs – de toda a Zona Leste. O bairro inteiro apoiava a gente. Quem ia ser contra?
Meu pai.
Na semifinal desse ano, ele invadiu o campo com um porrete, pra me bater. Meu irmão, a Liz e mais uma amiga o levaram pro buteco, pra tomar umas e se acalmar. Ele estava certo, ele estava certo.

(1988: Torneio Experimental na China (FIFA). A primeira seleção brasileira de futebol feminino convocada pela CBF fica em terceiro lugar.)

Começou o novo ano e eu fui morar na capital, com a tia, irmã do pai. Ela explicou pra ele: o ensino lá é muito melhor. Foi ela quem criou o pai, o avô se mandou e a avó morreu cedo. Se o ensino é melhor mesmo eu não sei. Mas o futebol, uau, é um sonho. Um sonho pesado, sim, e profissional. Ninguém mais me vaia.

(Seleção brasileira feminina: segundo lugar (2007) e terceiro (1999) em Copas do Mundo. Duas medalhas de prata em Jogos Olímpicos (2004 e 2008).

O mano, a Liz e a mãe estão na arquibancada. O pai, lá fora do estádio, não sei se procurando um porrete ou um buteco pra tomar coragem. Coragem que eu venho tomando desde aquele Natal. Wenisday, me abraça. Vamos entrar em campo e disputar a final. Será que vai ser a primeira?

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