Bendito futebol, maldito racismo

O Brasil ia participar do campeonato sul-americano na Argentina em 1921. Membro de honra da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), e presidente da República, Epitácio Pessoa, teria ordenado um time só de brancos para representar o país.

Lima Barreto então escreveu um artigo na revista Careta, no dia 1º de outubro daquele ano. O título: Bendito football. Como é um texto bem longo para os padrões da crônica de 2022, tomei a liberdade de editá-lo:

“O football é eminentemente um fator de dissensão. Agora mesmo, acaba de dar provas disso com a organização das turmas de jogadores que vão à Argentina atirar bolas com os pés, de cá para lá, em disputa internacional.”

[…] “O Correio da Manhã, no seu primeiro suelto de 17 de setembro, aludiu ao caso. Ei-lo:
 O Sacro Colégio do Football reuniu-se em sessão secreta, para decidir se podiam ser levados a Buenos Aires, campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro – homens de cor, enfim.”
 
[…] “O conchavo não chegou a um acordo e consultou o papa, no caso, o eminente senhor presidente da República.”

[…] “Foi sua resolução que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano”.

[…] “O que me admira, é que os impostos, de cujo produto se tiram as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas, não tragam também a tisna, o estigma de origem, pois uma grande parte deles é paga pela gente de cor.”

[…] “Os maiores déspotas e os mais cruéis selvagens martirizam, torturam as suas vítimas; mas as matam afinal. Matem logo os de cor; e viva o football, que tem dado tantos homens eminentes ao Brasil! Viva!”

P.S. – A nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, as cores; todos nós, para eles, somos macaquitos. A fim de que tal não continue seria hábil arrendar, por qualquer preço, alguns ingleses que nos representassem nos encontros internacionais de football. Há toda a conveniência em experimentar. Dessa maneira, sim, deixávamos todos de ser macaquitos, a olhos dos estranhos.

Como descendente de escravos, Lima Barreto sabia bem que, mesmo com o escravagismo abolido no papel, ele continuava sob outras configurações. Especialmente pela violência camuflada no ultraje e no rebaixamento social. O negro podia não ser mais açoitado, mas continuava em situação abjeta.

Instigante é, especialmente em época de Copa do Mundo, tomar contato com este escrito, publicado há 101 anos. Não só pela atualidade do autor carioca, mas pela deplorável persistência do tema. Infelizmente, o racismo, passadas tantas décadas, ainda segue entranhado mundo afora.

Basta ver o recente ato cometido contra o jogador Vinícius Júnior, quando o presidente da Associações de Agentes Espanhóis, afirmou que o atacante deveria “deixar de brincar de macaco”. Ou a crítica que certos setores da imprensa britânica fizeram às dancinhas comemorativas do escrete canarinho no Catar.

Nós podíamos devolver-lhes a injúria respondendo: “e vocês que ficam 15 dias olhando para um caixão, por que não deixam as nossas danças em paz?”

Melhor, entretanto, se fingir de morto. Assim, mostramos a eles que somos mais gentlemen.

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