Corria célere o ano de 1970, eu, dez anos de idade, calça curta, assim como os meninos de todo o Brasil, estava motivado pela possibilidade do Tri, que nos escapara quatro anos antes na Copa da Inglaterra. Não que eu soubesse disso na época, pois a lembrança mais remota que tenho, no que se refere a Copa do Mundo foi a do México em 1970 mesmo, a Olé 70!
As ruas pintadas e decoradas de verde e amarelo, a televisão preto e branco, nossos corações ansiosos, nem tanto pelos jogos em si, mas pelos cobiçados álbuns de figurinhas! Para um garoto de dez anos, as figurinhas eram caras, mas eu tinha um trunfo secreto: minha querida tia Sonia, professora, casada, tinha alma de criança e adorava colecionar figurinhas. O problema é que seu marido, meu saudoso tio Jurandir, não aprovava que ela as colecionasse. Solução? Fazer de conta que o álbum era “meu” e ela bancava os pacotinhos com as três figurinhas. Com essa “ajuda”, eu conseguia completar os álbuns com alguma facilidade. Foi assim com o maravilhoso “Ascenção e queda do Império Romano”, que lamento até hoje não ter guardado, outro da Conquista espacial, não me lembro direito o nome, com astronautas e planetas.
No caso do álbum da Copa, se não me falha a oscilante memória de cinquentão, o nome era “Heróis do tri!”, a procura era grande e havia, como sempre, as figurinhas “difíceis”. Rapidamente, fui completando o álbum, e quando faltava alguma figurinha, bastava levar as repetidas na matiné do cine Ourinhos, nos domingos a tarde, que passava filmes de faroeste, e trocar na saída. A molecada ficava gritando: quem tem o Tostão? Ou quem tem o Piazza? O Clodoaldo? No meu caso, para fechar o escrete canarinho (que cliché horrível) eu só precisava da figurinha do Carlos Alberto, justamente o capitão.
Pois bem, no domingo antes da grande final da Copa, Brasil já pintando como grande favorito, com um timaço de craques nunca mais igualado ou superado, eu só não tinha a figurinha do “capita”. Juntei várias difíceis, Gerson, Brito, Félix, Leão (então um jovem e promissor goleiro terceiro reserva de apenas 18 anos de idade) e fui à matinê. Na saída, perguntei a uns dois ou três meninos, quem tinha o Carlos Alberto. Um cara tímido, de óculos, encostado num cantinho me fez sinal que ele tinha. Era o Gustavo, ele estudava na mesma escola que eu e era nerd. Me aproximei e começamos a negociação. Sabendo que eu tinha quase todo o álbum fechado, ele exigia dez figurinhas, inclusive de jogadores de outros países pela do Carlos Alberto. Endureci, ofereci três e nada feito. Naquele momento, outros meninos, percebendo o impasse nos cercavam e davam palpites, que ignorávamos. Finalmente, fechamos por cinco e eu deixei ir o precioso Cubillas e o Gordon Banks, goleiro da Inglaterra. Fiquei bem feliz, mas a minha alegria durou poucos minutos.
Ao sair do cinema, caminhando alegre e despreocupado para casa, fui cercado por três meninos que chamávamos de “maus”. Na verdade, eram moleques de vila, no nosso linguajar de então, cidade pequena que segregava aqueles que moravam no centro e os outros. Eu era do centro, pacato, tímido. Os moleques, eram três, me cercaram e um deles, o mais mal-encarado, me disse: – passa as figurinhas! Eu falei – não! Mas eles não esperaram a minha tímida resposta e deram um golpe rápido na minha mão direita, justamente a que segurava o pacote de figurinhas, todas caíram ao chão. Imediatamente, outros meninos, pularam sobre o botim, causando enorme confusão. Eu, surpreso, com os olhos cheios de lágrimas, me preocupava apenas em preservar a figurinha do capitão, as outras eu podia perder. Mesmo chorando, com o rabo do olho, percebi que o menino mau, Julião, pegou a figurinha do Carlos Alberto. Não pensei e num ato de desespero me lancei de cabeça contra a sua barriga, uma vez que ele era bem mais alto que eu. Por esta ele não esperava e ao desequilibrar-se eu rápido tirei a figurinha de sua mão, apertando-a contra o peito. Ato contínuo, sai correndo, perseguido por uma horda de moleques surpreendidos e claro, pelo Julião. Me dirigi em direção à passagem da linha, se conseguisse transpor aquela cancela, estaria no meu bairro, Vila Mano e duvido que os outros tivessem coragem de me seguir ali, meu território. Sebo nas canelas, portanto, mas senti que eles estavam me alcançando, quando tive uma das mais gloriosas visões da minha vida: alguns metros à frente, calmamente encostados na parede do prédio dos correios, estavam Luiz Carlos e Marcelão, mais velhos, talvez na faixa dos 15 anos e amigos de sempre (até hoje). Foi um Deus nos acuda, pois, ao perceber quem era o perseguido, eles interpuseram-se a frente dos atrevidos ladrões e distribuíram pancadas á rodo: parecia um daqueles filmes de Hollywood, os então valentões caindo, ganindo como cães feridos e dando meia volta! Para coroar minha história, o Carlos Alberto ainda marcou o último gol daquela inesquecível Copa, na goleada de quatro a um contra a Itália!