Sou brasileiro, sou coreano

Meu pai, que era do Recife, filho de pai potiguar e de mãe guarani desposada por africano de Angola, conheceu minha mãe que, em Lisboa, viu o mundo pela primeira vez com os dois grandes olhos azuis herdados do pai suíço de Genebra.
Fui concebido no pós-guerra arrasado pelos escombros, mas prenhe de esperança, em Hiroshima (mon amour) e vindo à luz em Seul, na Coréia do Sul. Apreciador do piano de Chick Corea, tempos depois, me reencarnei no vale de Juquiratiba, situado aos pés da Serra de Botucatu, no interior paulista, onde enorme gigante dorme profunda, eterna e placidamente.
Por causa do Japão, se fosse mulher, me chamaria Yoko. Como nasci homem, ganhei o nome de John – E, por causa da Coreia, o sobrenome ficou Sun – corruptela de Jun, Hun, Gun.
Quando menino, era conhecido pelos vizinhos e parentes pelo carinhoso apelido de Johnny (referência a “Johnny B. Goode”, a canção do Chuck Berry), mas minha mãe só me chamava de Sun.
Quando entrava pelos corredores da casa cantando como se estivesse em musical da Broadway, minha mãe dizia: “lá vem o Sun”. E foi em Liverpool, eu cantando em frente ao estúdio Abbey Road, que George Harrison escutou minha mãe repetir o velho bordão “lá vem o Sun” e compôs “Here Comes the Sun”.
Quando parti de Juquiratiba, sonhei em nascer outra vez, e, desta vez, em São Paulo, a capital, então, meu centro de mundo. Mas, depois, o centro virou muitos e virou planetas, galáxias e universo onde os verdadeiros sóis brilham todos os dias e onde o Criador de tudo reina desde sempre.
E o mundo, enquanto isso, foi ficando cada vez menor. Gastei meu tênis de tanto andar por Nova York, a nova capital do meu mundo. Cruzei a ilha de Manhattan como quem caminha por continentes em busca da ancestralidade.
Encontrei parte dela na Quito dos quéchuas, onde morei sob o frio dos Andes, e renasci ao descobrir o sangue indígena da minha avó paterna. O canto xamânico dos indígenas aimarás no altiplano boliviano, a quatro mil metros de altitude, ecoa desde então nas orações que faço.
Sangue que se identificou com os mexicanos dos incas e maias e sua sábia cultura antiga devorada por quem chegou muito depois se achando dono. Ninguém é dono. Estamos só de passagem – e passagem curta, feito nuvem, feito cicio do vento, feito aleatório pensamento.
E conheci a Costa Rica sem exército, a provar que não precisamos de armas, pois a luta não se ganha pela força nem pelo poder, mas pela paz e pelo amor. Esse é o Deus da minha crença, o mesmo que fez de mim (de nós) morada do Espírito.
Mais tarde, me apaixonei pela Argentina ao conhecer Mendonza, onde nasceu Mercedes Sosa, de onde se vê a neve dos Andes e onde habita o elegante puma. E fiz parada na Montevideo derramada sobre o Rio de La Plata, onde aprendi a falar portunhol.
Quando atravessei o Atlântico, infelizmente, não foi para contatar os ancestrais da minha avó de Angola, mas, logo, descobri as riquezas culturais do Senegal (“deve ser legal ser negão no Senegal”, canta Chico César) e incorporei as ganas de Gana e a graças de Camarões; de ambos, evoco a vida as danças e cores deles, as lutas e as dores, a força e os tremores.
Na França de Mbapé e da negritude africana que ajudou a consolidar o país e encantar o planeta futebol me fiz francês porque, no maio de 68, como deveria estar em Paris e não estava, inventei de armar barricadas em Juquiratiba a fim de enfrentar moinhos de ventos.
Citei Dom Quixote não por acaso. Meu avô paterno veio da Ilha da Madeira, mas meu pai gostava de dizer que ele nasceu na Catalunha. Pois foi nas “cuevas” de Barcelona que eu nasci de novo ao ouvir o canto, as guitarras e ver os bailados dos pulsantes sapatos dos ciganos chocando-se com a madeira e criando música alucinógena. E eu me disse: “sou espanhol” – citando Paulinho da Viola: “o meu pai tinha razão”.
Não tenho laços com a Sérvia nem com a Croácia, como não tenho com o mundo árabe do Qatar, Tunísia, Marrocos, Arábia Saudita. Também sinto-me distante da Austrália, do Canadá, do Irã e do País de Gales, mas, se sou do mundo, sou croata, sérvio, catari, marroquino, árabe, tunisiano, australiano, canadense, iraniano e galês.
Nessa condição, sobrevoo Berlim com minhas asas de anjo postiço e Caetano me socorre: “Anjos sobre Berlim/ o mundo desde o fim/ e no entanto era um sim/ e foi e era e é e será sim”.
Minhas renascenças prosseguem na ficção e redivivo me encontro com a poesia de Shakespeare, o bardo britânico, na reflexão sobre o reino “podre” da Dinamarca, onde um príncipe agoniado tenta resgatar a dignidade do país.
Na mesma energia, nos chamados países baixos, me vi holandês percorrendo as ruas coloridas de Amsterdã, tão planas quanto as de Nova York. E me encantei com a cultura de um país que esteve por aqui – por pouco não falaríamos holandês, hoje.
Eu sou Brasil. Foi aqui, nesta vida, que aprendi um pouco mais da vida. Aprendi, por exemplo, que as fronteiras são invenção humana. E, no entanto, elas também evocam diversidade – o bicho-papão dos donos da verdade.
Na Copa do Mundo, as cores, os hinos, as bandeiras, os traços, os costumes, os idiomas e as características muitas, em tudo, revelam que, fisicamente, somos diferentes uns dos outros, apesar de nascidos da mesma essência, a terra, e destinados a voltarmos a ela. Ao mesmo tempo, em espírito, somos iguais, pois viemos do mesmo sopro de Deus e a ele retornaremos.
As disputas da Copa são esportes, manifestações lúdicas da condição humana. Por isso, torci pelo Brasil, mas não me entristeceria se o vencedor fosse a Coreia do Sul. Nasci na Coreia e sou Sun. Nasci no Brasil e sou João. Sou brasileiro, sou coreano, sou do mundo. E não há uma verdade, mas muitas. Milhões, bilhões delas.

* Na foto, Richarlison, que fez o terceiro gol do Brasil contra a Coreia do Sul

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