Quem sabe um dia

Sentados à mesa de sempre do bar de sempre desde as 10h da manhã, com aquelas cangibrinas cheirosas descendo uma atrás da outra, céu lusco-fusco, Tristão, Poleto, Simões, Almeríades e Tobias se encaminham para o que seria o fim da resenha sobre aqueles jogos merrecas que fizeram nossa seleção, quando Almeríades, que sempre mais fala do que escuta e bebe, abriu a boca:

– Tem uma coisa me incomodando faz tempo: Carlinhos, o que, da gente, chegou mais longe no futebol, não torce mais para a seleção.
Todos se voltaram para ele.
– Que porra é essa, Mera? Carlinhos ama a seleção. Jogou por ela, porra!
– Digo mais: acho até que ele torce contra a seleção. Não na cara dura, mas no íntimo. No meio da gente, torce a favor. Aliás, finge.
– Que maluquice, Mera! Carlinhos sempre torceu para a seleção – ponderou Tobias.
– Mas não torce mais. Hoje, ele torce contra, mas com vaselina: se a seleção ganhar, comemora com a gente, mas não por dentro. É uma alegria triste. Se perder, fica triste com a gente, mas por dentro fica de boa. É uma tristeza alegre.
– Tipo uma esquizofrenia? – Poleto falou.
– Sei lá! Uma dessas coisas que dá na cabeça da gente depois dos 30. – Mera falou e engoliu a cachaça.

Mera, naquele momento, estava meio certo. A metade errada era a de que ele torcia contra a seleção.

– Mera, você tá insinuando que Carlinhos não gosta mais de futebol?
– Não, isso não! Ele gosta de futebol, mas perdeu o encanto pela seleção.

Era isso, Mera! Porque não dava para encaixar Carlinhos na categoria “dos que não se interessam por futebol”: – “Você viu o jogo?” – “Vi de relance. Me disseram que o time ganhou, né?”. Também seria injusto ligá-lo aos que “não gostam de futebol”, porque o consideram popular, desimportante, coisa de gente alienada: – “Você viu o jogo? – “Não tenho tempo para perder com isso. Enquanto gente como você comemora a pausa no trabalho para assistir jogo de futebol, gente como eu trabalha e se preocupa com o essencial”. De jeito nenhum! Carlinhos gostava de futebol, porém não torcia mais para a seleção. Não fazia mais diferença pra ele. Desencantou-se, ainda que, por gostar de futebol, não parou de assistir aos seus jogos e os de outras seleções.

Mas nem sempre foi assim. Carlinhos se lembra, por exemplo, de ter comemorado com os pais o gol de Roberto Dinamite, na Copa da Argentina, em 78, que nos deu a vitória sobre a Áustria e nos levou para a 2a fase. Também se lembra de ter corrido o quintal com aquele gol do Falcão, na Copa de 82 na Espanha, naquele jogo fatídico contra a Itália. Ora, Carlinhos se entristeceu de verdade em 86, quando Zico, nosso camisa 10, perdeu o pênalti diante da França. Ele torcia para a seleção. Ele, inclusive, se lembra quando, molecote, herdou do seu tio Nelson, que mora no céu, aquelas revistas velhas, das Copas de 58 e 62. Lia e relia aquelas páginas envelhecidas, amareladas e imaginava cada foto como se assistisse aos lances de Didi, Garrincha, Pelé, Vavá, Amarildo.

Talvez ninguém saiba, nem mesmo Carlinhos, o que o motivou a largar mão de torcer pela seleção. Esse jeito, segundo Mera, alegre-triste, triste-alegre, mas que, de fato, era de indiferença. Mas os amigos estavam ali, com aquela suspeita metade verossímil.

– Foi por causa daquele time sem brilho que jogava como um time europeu na Copa da Itália. Aquele que tinha um treinador carioca. Como é mesmo o nome dele?
– Antônio Lopes, Tristão.
– Não é! É aquele que treinou o Vasco e o Flamengo?
– Antônio Lopes, caralho!
– Não é, porra!
– Aquele que a gente não entendia nada do que ele falava.
– Ah, tá! Aquele que falava difícil pra cacete?
– Esse!
– Sebastião Lazaroni.
– Então, foi por causa dele que Carlinhos começou a torcer contra a seleção.

– Eu já acho que foi por causa do time do Parreira e do Zagallo, o da Copa seguinte, que foi nos States.
– Não foi, Tobias! Aquele time ganhou, porra! Tinha Bebeto e Romário!
– Mas tinha o Dunga também! E ainda aquele jogador do Palmeiras, que era do Vasco, e que só passava a bola de lado.
– Mazinho!
– Um lateral direito que virou volante.
– Dunga jogou muito naquela Copa, Poleto! Não vem com essa!
– Tobias, não foi por causa daquela seleção, pois me lembro do Carlinhos, aqui nessa bodega, bêbado, embalando a criança igual a Bebeto.
– Rapaziada, pois eu me lembro de ele falar que aquele time venceu, mas jogava feio. Que time bom não ganhava nos pênaltis! – finalizou o cético Tobias.

– Pois pra mim Carlinhos finge que torce para a seleção desde 98, quando deu aquele curto circuito no fenômeno.
– Eu também acho, Simões! Carlinhos falou uma vez lá na sua casa que “um dia ia aparecer a merda toda. Que os caras tinham vendido aquele jogo para a Fifa em troca do título de 2002. Que foi tudo acertado”.
– Pode ser – riu Simões. Ele falou isso mesmo. Por vezes. Disse também que o Zagallo tinha sido um jogador comum, e que se não fosse de time carioca, seria o Pepe o titular nas Copas de 58 e 62.
– Puta duma verdade: o Pepe era muito melhor que o Zagallo!

– Sei não, gente. Pra mim ele perdeu o brilho no olhar por causa da seleção do Felipão.
– Ah, não fode, Mera! Aquela seleção deu espetáculo! Rivaldo, Ronaldinho, Ronaldo… Puta que pariu! Os caras jogavam pra cacete.
– Mas não é por causa disso! Ele não gostava daquele negócio de “Família Scolari”. Dizia que “time não é família nem aqui, nem na China!”.
– Disse isso?
– Disse mais: que já sabia que o Brasil ganharia. Seria a troca por ter entregado a Copa de 98 pra França.

– Pensando bem, eu acho que Carlinhos finge torcer pela seleção por causa do Parreira.
– Como assim, Poleto?
– Carlinhos acha que o Parreira fodeu a gente em 2006, com aquela história do “quarteto fantástico”.
– O quê?
– É isso mesmo. Aquela história de Kaká, Ronaldinho, Ronaldo e Adriano jogarem juntos o infernizava.
– Mas o Parreira colocou os melhores!
– Mas ele achava que o Parreira tinha de meter um dos dois centroavantes no banco e abrir o Ronaldinho do lado esquerdo, onde ele jogava no Barcelona. Que o time ficava pesado com aqueles dois lá na frente.
– Só o Zé Roberto jogava naquele time! – lembrou Tristão.
– Isso é verdade – engrossou Tobias.
– Mas o time arrebentou na Copa das Confederações em 2005, Poleto!
– Mas Carlinhos dizia, e ainda diz, que isso não vale nada! Que é “coisa pra inglês ver”.

Mais cachaça no copo. Línguas molhadas. Resenha aquecida.

– Ninguém vai falar de 2010?
– Aí não dá! Seja sincero, Mera: nenhum de nós torceu pra aquele time! Porra, Julio Cesar, Michel Bastos, Felipe Melo… Vai se foder!
Todos riram.
– E ainda tinha o Dunga como treinador! Porra, que time ruim do caralho!
– O Dunga brigava até com repórter!
– Lembra que, nessa Copa, a gente assistiu a uma partida na casa do Espeto?
– Sim, sim! Aquele mão-de-vaca do caralho. Nesse dia, ele não ajudou com nada, porque já tava dando a casa.
– Filho da puta! A gente teve de sair de lá e vir aqui pegar mais cerveja.
– Soube que o Espeto largou a mulher.
– Claro, porra, a mulher dele dava pra todo mundo! Todo mundo sabia, menos ele.
– Até ele sabia!
Todos riram.
– O Tobias comia ela também, não é Tobias?
– Eeeeu? Nunca!
– Comia, sim! Assume.
– Não comia!
– Pode falar que comia! Ela foi embora daqui faz tempo.
– Tive de comer.
A bodega quase veio abaixo. Tristão chegou a se ajoelhar de tanto rir.

Em meio à bebedeira, já de noite, Mera, que tinha começado tudo isso, assumiu o leme novamente.

– Olha, eu não sei. Mas uma coisa é certa: Carlinhos não largou a seleção naquele 7X1. Não foi. A coisa toda já tava instalada na cabeça dele.
– Concordo, Mera.
– Concordo.
– Também acho.
– Certeza.
– E agora, nessa Copa? O time parece bom. O tal do Tite arma bem a coisa toda. Será que Carlinhos não volta a acreditar no time? Torcer de verdade? – argumentou Poleto.
– Duvido. Ele tá contaminado depois de tantos anos torcendo contra.
– Mas essa seleção tá interessante, Mera. Aquele moleque do meio joga pra caralho, o que era do Vasco. E também aquele outro, que jogava pouco no Santos, mas que estourou na Europa.
– Quem, o Danilo?
– Não! Esse não joga nada. Falo do Casemiro.
– É verdade. Moleque joga muito.
– Então, não sei, rapaziada. Carlinhos é puta véia. E puta véia não tem ilusão.
– E se a gente trouxer o filho dele pra assistir ao jogo? Aí ele não tem como torcer contra. Nem no íntimo. Ele vai ver a esperança nos olhos do moleque e a esperança do moleque vai amolecer o coração dele.
– Boa! Quem sabe a paixão do moleque o contamina.
– Aquele moleque é foda. Gosto dele. Não é de jogar conversa fora.
– Vocês falaram do Casemiro e do Coutinho. Nós temos o Neymaaar, porra! – gritou Tristão.
– Eu não suporto o Neymar, Trista.
– Nem eu.
– Nem eu.
– E tenho certeza de que Carlinhos também não, a começar por aquela putaria que ele faz no cabelo.
– Larguem do pé do Neymar! Ele joga pra caralho. Ele ainda é novo, porra?
– Novo? 26 anos, caralho!
– Que joga, joga! Mas, Trista, ele é cheio de merda: ora pinta o cabelo, ora chora, um cai-cai do caralho. Porra, por que não joga futebol apenas?
– Vocês viram que o Carlinhos não comemorou os dois gols contra a Costa Rica? – Mera mudou o assunto.
– Mentira!
– Foi! Enquanto a gente se abraçava, ele saiu de fininho pra pegar mais cerveja. Depois, ele fingiu que tinha sido chamado por alguém lá fora.
– Eu não vi isso!
– É que foi rápido, mas eu vi, Simões.

Se os amigos erravam ao pensar que Carlinhos torcia contra a seleção, estavam certos nas suas explicações sobre seu desencanto. Havia mais coisas! Mas Carlinhos seguiria sem revelar. Seguiria naquela alegria-triste. Porque não dava para assumir isso. Não torcer para a seleção com o país parado? Ele não faria isso. Não na frente do moleque dele. Não diante dos amigos. Quem sabe um dia. Quem sabe ele volta a ser a criança que folheava as revistas amareladas. Quem sabe se apaixone novamente pela seleção. Quem sabe quando uma seleção de verdade aparecer de novo. Quem sabe a gente perdoa e é perdoado. Quem sabe o amor floresça e chegue até a gente. Quem sabe a gente grita gol bem alto, a ponto de desencadear o choro. Quem sabe a gente aprende a falar. Quem sabe a gente aprende a pensar antes de falar. Quem sabe o medo vai embora e a gente relaxa. Quem sabe a gente almoça com a família sem mágoas. Quem sabe a gente aprende a não se maltratar tanto. Quem sabe a gente fale o que precisa ser falado. Quem sabe a gente retire o que falou. Quem sabe a gente aprende o que os mais velhos ensinam. Quem sabe a gente ensine os mais novos com carinho. Quem sabe a gente se beija quando se encontra. Quem sabe a gente aprende a jogar enquanto trabalha e a trabalhar enquanto joga. Quem sabe a gente encontre um trabalho que a gente goste. Quem sabe a gente morra de tanto viver. Quem sabe a gente viva antes de morrer. Quem sabe a gente aprenda a sorrir. Quem sabe aí a vida faça sentido. Quem sabe o sentido seja viver. Quem sabe um dia. Quem sabe.

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